Manifesto dos atingidos pela Samarco Dois anos de lama, dois anos de luta!
Dois anos do rompimento da barragem de Fundão. Aniversário das incertezas. Dois anos e tudo que nós, atingidos, temos de concreto são pilhas de documentos redigidos a partir de horas […]
Publicado 05/11/2017
Dois anos do rompimento da barragem de Fundão. Aniversário das incertezas. Dois anos e tudo que nós, atingidos, temos de concreto são pilhas de documentos redigidos a partir de horas exaustivas de reuniões e assembleias infindáveis. As ações mitigatórias nas áreas de moradia, educação, patrimônio, entre outras, possuem ainda caráter de emergência. Até quando nossas prioridades serão vistas como emergenciais?
É lamentável estarmos como estamos dois anos depois daquilo que alguns classificaram como acidente, outros como tragédia, evento vejam bem, quiseram atribuir a culpa até a abalos sísmicos, a fenômenos da natureza. Mas, o que todos nós sabemos é que o rompimento de Fundão foi um CRIME. Um CRIME praticado pela mineradora SAMARCO, suas acionistas VALE e BHP Billiton, e pelo poder público que não exerceu devidamente seu papel fiscalizador. Afinal, uma empresa que trabalha com a exploração mineral não funciona sem o licenciamento de órgãos ambientais – em partes, também culpados pelo rompimento de Fundão.
Esse crime nasce da ganância e da irresponsabilidade daqueles que, mesmo conhecendo os riscos da tragédia anunciada, optaram pela negligência com o meio ambiente e com os moradores das áreas de risco. Sem sirenes, sem informações sobre como agir em casos de emergências, sem conhecimento da existência de barragens à montante de nossas vidas… Quantos de nós vivíamos a tranquilidade de nossas rotinas sem calcular o perigo que corríamos?
Por mais previsível que fosse o rompimento, a verdade é que suas consequências só agora estão sendo conhecidas. Estamos falando de um CRIME anunciado que retirou a vida de 20 pessoas entre elas, uma criança que não teve sequer a oportunidade de nascer para o mundo. Um CRIME que deixou familiares em luto e atingiu o coração de inúmeras comunidades ao longo da Bacia do Rio Doce.
Falamos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, mas também de Camargos, Ponte do Gama, Paracatu de Cima,Pedras, Borba, Campinas. Barretos, Gesteira, Barra Longa. Santa Cruz do Escalvado, Rio Doce, Sem Peixe. Governador Valadares, Colatina, Regência. Minas Gerais e Espírito Santo. Comunidades indígenas, povoados rurais, centros urbanos. Trabalhadores da cidade, do garimpo, da pesca, da terra.
Falamos das nascentes e dos rios contaminados, das matas arrancadas, dos animais que perderam e seguem perdendo suas vidas. Um sofrimento que eclodiu em Mariana, mas que corre, pelo leito do rio, de Fundão até os corais de Abrolhos, no sul da Bahia, até as águas do Oceano Atlântico, até sabe-se lá onde essa lama possa virar outra coisa que não dor e morte.
Quando se fala em um crime, espera-se que as investigações aconteçam, que os réus sejam condenados e que as vítimas possam prosseguir vivendo com dignidade. Infelizmente,não é isso que está acontecendo. Após aquele 5 de novembro, vivemos uma maratona que começou com cadastros e mais cadastros, entrevistas, reuniões e assembleias para apresentação e votação dos terrenos onde as comunidades serão reassentadas, levantamento de expectativa, visitas às áreas escolhidas, análise de maquete e projetos urbanísticos, audiências para garantir o reconhecimento das vítimas como atingidos – às vezes, em condições que se assemelham a de um réu que busca provar a própria inocência. De concreto? Estamos sem reassentamento, sem indenizações definitivas, vivendo na provisoriedade de cotidianos nos quais não nos reconhecemos.
Perdemos tanto na lama e seguimos violados em nossos direitos básicos. Ninguém está enfrentando o que cada um de nós tem passado – o constrangimento, a humilhação e a decepção de sair de uma audiência sabendo que nossos direitos estão sendo subtraídos por pessoas que não conhecem, de fato, a vida de cada comunidade. Estamos na mão de terceiros que não sabem o que perdemos, que desconhecem aquilo que nos importa. Querem nos cadastrar, mas não querem nos conhecer. Dizem que querem nos indenizar, mas não se interessam em saber o valor que damos àquilo que nos foi tirado.
O que tem marcado o dia a dia de muitos atingidos que perderam suas casas é viver na cidade, num lugar que não é seu, longe dos vizinhos e parentes. Pessoas estão adoecendo e as incertezas só aumentam. Lidamos com uma Fundação que se diz responsável pela reparação dos danos causados pelas empresas, mas que não nos passa qualquer segurança pelos erros, pela troca constante de funcionários, pelo comportamento impositivo e restritivo de direitos, pelo uso das palavras das empresas. Fundação Renova vê atingido como impactado, crime como acidente, direito emergencial como benefício. É por isso que atingido vê Renova como Samarco, como Vale, como BHP.
Para enfrentar esta luta de Davi contra Golias, nos organizamos. Compomos Comissões, participamos de Coletivos, escrevemos e divulgamos jornais, incomodamos os que destruíram nossa paz com audiências, passeatas, marchas, ocupações. Não abrimos mão de nossa autonomia, de acreditar em nós mesmos e não nas promessas feitas em bonitos discursos de funcionários bem pagos. Com toda a nossa luta queremos também dialogar com a sociedade e reafirmar que, de norte a sul deste país, somos todos atingidos. E temos muitos amigos nas universidades, nas Igrejas, no campo da arte e da cultura que são força generosa que nos fortalece nesta caminhada.
Esperamos que um dia tudo isso tenha fim. Que os culpados sejam punidos e que a vida de cada atingido volte ao normal. Sabemos que não será do mesmo jeito, mas que tenhamos fé, sabedoria, saúde e força para recomeçar. O cenário está repleto de difíceis incertezas. Contudo, a luta, desde que nos foi dada, nunca deixou de ser travada. Aprendendo a ser atingidos, seguimos nela.
5 de novembro de 2017