A ditadura militar criou o modelo de violação nas barragens

Luta contra a barragem de Machadinho, no Rio Grande do Sul, em 1989 – Foto: Douglas Mansur   por Leandro Gaspar Scalabrin, do Coletivo Nacional de DH do MAB O padrão […]

Luta contra a barragem de Machadinho, no Rio Grande do Sul, em 1989 – Foto: Douglas Mansur

 

por Leandro Gaspar Scalabrin, do Coletivo Nacional de DH do MAB

O padrão vigente de implantação de barragens que tem propiciado de maneira recorrente graves violações de direitos humanos foi forjado durante a ditadura militar brasileira e persiste.

A ditadura reestruturou o Ministério de Minas e Energia (Decreto 63.951/98), criou o DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica). A Eletrobrás, Eletrosul e Eletronorte foram criadas durante a ditadura e construíram mais de 30 grandes usinas hidrelétricas, obras faraônicas, ufanistas e superfaturadas, nas quais os recursos públicos eram desviados, entre as quais: Tucuruí, Ilha Solteira, Jupiá, Itaipu, Passo Fundo, Sobradinho e Balbina. Estas obras foram financiadas por empréstimos internacionais que aumentaram a dívida externa brasileira e beneficiavam grandes empresas internacionais. As empresas se beneficiaram através da compra de seus equipamentos e da venda de energia a preços subsidiados (empresas japonesas no Pará) e as empreiteiras (que colaboravam com a ditadura) através da construção das obras.

A ditadura consolidou a visão tecnocrata do setor elétrico que persiste, em parte, até os dias de hoje. Dentro desta visão as barragens representam o progresso e o homem e a natureza são meros obstáculos a construção das usinas, que não possuem direitos e devem ser removidos. Como afirma uma importante figura do setor nos dias de hoje: “não dá pra discutir o Natal com o peru”. A visão patrimonialista de atingido, como apenas o proprietário, causa de inúmeras violações, surge nesse período. Em Itaipu, 40.000 pessoas do lado brasileiro, e 20.000 do lado paraguaio, foram vítimas de violações de seus direitos, sem receber indenizações e sem serem reassentadas. Inúmeros camponeses foram “desaparecidos” e sequer constam das listas oficiais. Na Barragem de Ilha Solteira (SP), a resistência dos atingidos foi tratada como “guerrilha” pela ditadura. O filme “O profeta das águas” narra a história de Aparecido Galdino Jacintho, um líder religioso que se opôs a construção da Barragem de Ilha Solteira (a maior do Brasil na época) a partir de 1966. Galdino foi julgado por vários tribunais civis e militares, incriminado na Lei de Segurança Nacional, e por nove anos ficou detido com outros presos políticos e comuns, nos presídios de Barro Branco, Tiradentes, Carandiru, além das cadeias do DOPS e DOI-CODI. Em 1972, ao ser condenado pelos Tribunais foi considerado “louco” (por não aceitar o progresso?) e foi transferido para o Manicômio Judiciário de Franco da Rocha onde cumpriu pena até 1979. Os camponeses que o seguiam foram presos por três meses na cadeia de Estrela D ?Oeste.

Dentro das Estatais do Setor Elétrico foram criadas as AESIs (Assessorias Especiais de Segurança e Informações), vinculadas à Divisão de Segurança e Informações (DSI) e subordinadas ao Serviço Nacional de Informações (SNI). As AESIS eram responsáveis pela espionagem, repressão, delação e em prisões, sequestros e assassinatos de trabalhadores e sindicalistas do setor elétrico, e lideranças e atingidos por barragens brasileiros e de outros países, como no caso da AESI de Itaipu.

O DSI do MME produzia relatórios secretos ainda em 1984 sobre as mobilizações dos atingidos pelas barragens da bacia do Rio Uruguai, espionando a Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB), uma das comissões que criaria o MAB em 1991) e a CPT. A ASI Eltrosul também realizava suas espionagens, as quais estão disponíveis atualmente no Arquivo Nacional. A de número G0098322 de 18-9-84, analisa um caderno de estudos da CRAB que apresentavam as consequencias do projeto de construção de 22 barragens na Bacia doRio Uruguai. Outro dossiê revela a espionagem de assembléia realizada após a democratização em 05 de maio de 1988, no qual os arapongas do setor elétrico se mostram preocupados com a organização dos atingidos que estavam discutindo a mobilização nacional para realizar o I Encontro Nacional de Atingidos por Barragens e “discutir e definir uma filosofia igual para os movimentos de famílias atingidas em todo o Brasil”.

Outro fato que merece destaque é que Itaipu foi moeda de troca para o apoio material e político da ditadura brasileira aos conspiradores chilenos que derrubaram o governo socialista de Salvador Allende. Em troca deste apoio a ditadura brasileira exigiu que votasse a favor do Brasil ou se abstivesse da votação, na questão apresentada pela Argentina nas Nações Unidas, contra a construção da usina binacional.

Os resquícios da ditadura ainda entulham as lutas e a realidade dos atingidos por barragens. A Lei 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional) que considera sabotagem e crime contra a segurança nacional atos contra instalações de usinas e barragens, ainda em vigor, é um resquício dessa época, que foi utilizado contra militantes do MAB que participaram de protestos no Rio Grande do Sul nos anos 2000.

A maior parte da política energética nacional (lei 9.478/97), que considera a geração de energia através de hidrelétricas um “interesse nacional” de “todos/todas” é outro resquício da ditadura, princialmente pelo fato de instituir um Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) sem qualquer tipo de participação popular. O representante da sociedade civil neste conselho, não precisa representar nenhuma organização popular, mas precisa ser um “especialista em matéria de energia” (Decreto 5.793/2006). Aliás, a Política Energética Nacional nunca foi submetida a processo de participação popular, através de conferências municipais, estaduais e nacionais, como ocorrem em outras políticas públicas.

A legislação que trata dos direitos dos atingidos ainda é a mesma utilizada na ditadura militar, que reconhece o direito apenas o proprietário, e como reparação apenas a indenização em dinheiro: o decreto 3.365 imposto em outra ditadura militar brasileira, a de Vargas em 1941.

Por estas razões, atingidos e atingidas de todo o Brasil estarão se somando as lutas e protestos contra o golpe militar de 1964, “descomemorando” os 50 anos do mesmo, em 31 de março/1 de abril próximos. Ditadura nunca mais, resistência sempre!

Contamos com a mobilização e apoio de todos/as parceiros e aliados dos atingidos por barragens para mais essa luta, e esperamos encerrar 2014 com um novo tipo de conquista: a conquista de uma Política Nacional de Direitos para os atingidos, um instrumento para começar a destruir os alicerces da máquina de violação implantada na ditadura.

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