Via-sacra à Belo Monte

Val vem do Assurini, atravessa a balsa e chega a Altamira para expor sua situação e de seu povo, atingido por Belo Monte. Já fez o mesmo trajeto algumas dezenas […]

Val vem do Assurini, atravessa a balsa e chega a Altamira para expor sua situação e de seu povo, atingido por Belo Monte. Já fez o mesmo trajeto algumas dezenas de vezes apenas neste ano. Assurini passa por um momento crucial, pois vê a barragem seguir atropelando tudo sem uma resposta minimamente razoável por parte da Norte Energia.

Às nove horas e quarenta minutos chega ao INCRA com a intenção somente de remarcar reunião para a Agrovila Sol Nascente, no Centro de Formação Irmã Dorothy. No dia 1º de setembro esteve ali, e agendou a reunião para cinco de outubro, mas o Executor do Órgão simplesmente se esqueceu. Como essa gente é esquecida!

Val apresenta-se à recepcionista, que já o conhecia. Lembrava bem o seu rosto de camponês indignado, e a ‘sua’ questão. Mesmo assim ele fala tudo de novo. Ela anotou ‘tudinho’, e disse que o Executor estava atendendo outra pessoa: ‘é só aguardar’, disse-lhe, indicando a cadeira.

Val senta-se um pouco, exausto que estava. Saíra de casa de madrugada, andara 12 km a pé, pegara um Pau de arara, suportara os solavancos por mais 28 km em estrada de chão. Não é fácil!

Pressentindo que aquilo iria demorar, ensaia entrar e subir até a Casa de Governo, que funciona no andar de cima. Mas é logo barrado pelo Guarda. A atendente o chamou, pegou-lhe o nome, depois o liberou para subir as escadas.

Não havia ninguém na Casa de Governo, embora fosse horário de trabalho, dez horas. A copeira, que, por acaso, estava ali, na sala de atendimento, disse-lhe, amavelmente: ‘eles ainda não chegaram!’. E justificou-se: ‘certamente encontraram alguma coisa para resolver pelo caminho’.

Val fica imaginando que a Casa de Governo em Altamira – único município brasileiro que tem esse tipo de serviço, um órgão exótico e precário – é como um Corpo de Bombeiros que serve para apagar fogo, mas sem extintor. E barrar um rio como o Xingu, o fogaréu é grande!

Descendo de novo as escadas, Val procura ao menos um cafezinho, que lhe restaurasse as forças e lhe afastasse o sono, mas não encontra. Havia uma garrafa no galpão, com copos de plástico, mas vazia. Então toma água, e senta-se de novo na cadeira.

Dali fica reparando ao redor. Uma mulher idosa, mas jovial, falava ao telefone. Como conversasse alto, ele vai ouvindo a fala dela. Contava para alguém, do outro lado, da Belo Sun, mineradora canadense em processo de instalação na Volta Grande do Xingu, região onde o rio terá 100 km secos por causa de Belo Monte. Parecia satisfeita. Dizia que os homens eram bonzinhos, davam carona, carregavam as compras dos ribeirinhos numa distância de 10 km, visitavam as casas, tomavam café. Val ouve tudo aquilo como um filme antigo que lhe retornasse à cabeça.

Outra mulher, que chega apressada, queria resolver uma questão do seu lote. Foi-lhe dito, porém, que precisava de um Requerimento de seu pai. Ela fez o que podia, disse que isso era impossível, que seu pai mora distante, no interior, mas a atendente simplesmente afirmou: ‘não podemos fazer nada!’. A Mulher se foi!

Um senhor alto e claro, com capacete no braço, entrou e foi direto à recepcionista, cochichou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Nesse exato momento, alguém do INCRA bateu-lhe nas costas, com ares de intimidade: ‘em que lhe posso ajudar?’. Depois, virando-se para a recepcionista, olhando-a no rosto, disse, num misto de exclamação e pergunta: ‘aqui em baixo, ele pode entrar de bermuda, não é mesmo!? A atendente apenas confirmou com a cabeça. Parecia que aquilo já era uma coisa costumeira. Ele entrou, e os dois ficaram um tempão conversando numa mesa, lá no canto do salão.

Val permanece no INCRA de nove e quarenta até onze e quarenta, mas sai satisfeito, pois, ao menos, consegue, em duas horas, remarcar a reunião, que, agora, ficou agendada para o dia vinte e cinco de outubro.

Val resolve subir outra vez à Casa de Governo e, agora, teve sorte.  A coordenadora estava. Ela o atendeu, entrecortando a conversa, resolvendo, por telefone, um fechamento da Transamazônica em Pacajá, motivado por um atentado contra uma lutadora local. Uma caminhoneta estranha lhe atingira a moto, e a jogara longe. Por sorte a mulher não perdera a vida, mas ficara muito machucada.

Na Casa de Governo, Val descobre um dado que o deixa surpreso, e ainda mais indignado. O PA (Projeto de Assentamento) Assurini – um dos assentamentos da grande área do Assurini, com trinta mil pessoas – tem quatrocentas e cinquenta e nove famílias e, tecnicamente, caberiam apenas trezentas.

Val questiona. E vem a resposta:

‘O INCRA errou’, disse o funcionário, na maior calma. ‘Mas fazer o quê? Cento e cinquenta e nove famílias vão ter que sair!’.

Val sai com a cabeça quente, e meio confusa. A Norte Energia quer expulsar os camponeses da terra para encher o lago de Belo Monte. Agora, também o INCRA quer arrancar, da mesma localidade, cento e quarenta e nove  famílias.

A manhã terminou! Val vai à casa do seu cunhado para almoçar e voltar à tarde para continuar sua via crucis.

Sua próxima estação, às 14 horas, é o IBAMA. O sol estava muito quente. Ele olha para o Xingu, ali do lado, e tem vontade de deixar tudo e cair naquelas águas. Um Guarda, da sombra, lhe pergunta o que deseja, e lhe indica a porta de entrada. ‘Fique à vontade’, disse-lhe.

Ele entra, senta-se, depois nota uma menina lá no canto, num local cercado de vidro com um pequeno orifício, e vai procurá-la. A menina, que era a secretária, o atendeu maravilhosamente bem. Ouviu-o com atenção.

A principal informação que Val busca ali é sobre o Caderno de Preços da Norte Energia. Sempre muito educada, a menina lhe explicou que a Superintendente do IBAMA está há três meses para Brasília. Estaria fazendo cursos e encontros. E disse que todas as questões referentes a Belo Monte se revolvem lá. ‘Aqui não temos nem o Caderno de Preços’. Abrindo um sorriso, lhe prometeu: ‘ela chega no dia nove de novembro, com certeza vai trazer muitas informações para vocês, inclusive vamos solicitar à Norte Energia o Caderno de Preços. Quem sabe eles nos arranjam um!?’.

Val sai boquiaberto; ri daquela situação cômica e, ao mesmo tempo, dramática. Belo Monte vai a pleno vapor! Mas ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém sabe de nada. Nem o IBAMA, em tese o órgão que dá as licenças.

Despede-se, e sai rumo à Prefeitura. Lá ele deseja averiguar resposta de ofício protocolado no dia três de setembro reivindicando informações sobre processo de concessão de operação da balsa do Assuniri (os camponeses pagam uma espécie de pedágio para ir à sede do próprio município; uma moto, por exemplo, são sete reais) e projeto de asfaltamento da Transassurini.

Vai antes ao setor de protocolo. A secretária procurou, procurou, até encontrar o número do ofício, e o assunto. E pediu-lhe que se dirigisse ao gabinete do Prefeito: ‘lá você terá a resposta!’, disse.

Ele chega lá, meio tímido, com aquele pedaço de papel na mão, escrito à caneta, e mostra à senhora que se achava atrás do balcão. Fala que deseja obter resposta da Prefeitura sobre aquele documento.

A senhora, ranzinza, parecia não ouvir direito. Atendeu-o mal. Depois lhe disse apenas que era hora de almoço. Val olha no relógio: quatorze horas e trinta minutos. A dona continuou falando: ‘a secretária vai chegar às 16 horas’.

Val sai dali coçando a cabeça, enquanto decide o que fazer, e resolve ir embora. Não dava tempo de esperar. Precisava tomar ônibus para Vitória do Xingu às dezesseis e trinta, onde iria visitar acampamento de 1000 famílias. Com Belo Monte, a questão da moradia está explodindo por todo canto.

Val é todo um povo atingido que seque se despertando!

No dia 18 de outubro, famílias organizadas no MAB ocupam o escritório da Norte Energia, no bairro Jatobá. A entrada foi quente, com um empurra-empurra, mas entraram e saíram de cabeça erguida. E o melhor: com os ânimos renovados!

No Acampamento Novo Horizonte, com 80 famílias e quase 100 crianças, 200 pessoas se reúnem no dia 7 de novembro com representantes do governo federal (casa de governo) e reivindicam a construção de suas casas: ‘o pobre só vale na hora do voto! Já sofri muito, e resolvi lutar! A gente não quer avião, nada de luxo, mas casa para morar!’.

No dia 12 de novembro está marcada na Agrovila Sol Nascente (Assurini) reunião com presença da Norte Energia e representantes do governo para cobrança de reassentamento coletivo.

A luta do povo não é vã!

A Via-sacra normal termina na estação do céu. Val, síntese de um povo massacrado e rebelde, sente que a Via-sacra à moda Belo Monte poderá terminar antes, com a força da insurreição popular. Alguns sinais se fazem claros. É uma gota d’água, mas desss pequenas gotículas se formam grandes oceanos.

Com tanta omissão, com tamanha indignação represada, haverá água suficiente para romper o muro da prepotência!

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| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

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