Sobre fósforo e pólvora

Tarifas públicas é um roubo! Engana-se quem imagina estar diante, apenas, de mais um grito de ordem. Essa frase revela uma verdade contundente: a tarifa pública como mecanismo de transferência […]

Tarifas públicas é um roubo!

Engana-se quem imagina estar diante, apenas, de mais um grito de ordem. Essa frase revela uma verdade contundente: a tarifa pública como mecanismo de transferência de renda do trabalhador para a classe dominante. Exatamente, portanto, na direção contrária do discurso de distribuição de renda e de compromisso social, tão bem arquitetado por governos e empresas, tanto dos setores privados quanto estatais.

O Estado de Minas é detentor de imensas riquezas e, particularmente, é marcado por essa evidência e contradição. Veja-se o que acontece com a tarifa de energia.

A conta de luz em MG é a mais cara do Brasil, e a 3ª mais cara do mundo. O seu preço subiu, assustadoramente, com a onda de privatização do último período, ainda que, por vezes, cheia de sutilezas. Em 1995, a família pagava 0,02 (dois centavos) por um kW/h/mês, já em 2011 esse valor chega a 0,60 (sessenta centavos) pela mesma quantia. Algumas empresas, porém, pagam, ainda hoje, 0,04 (quatro centavos) por um kW/h.

Os consumidores residenciais, corretamente chamados de ‘cativos’, é que sustentam os consumidores livres, que podem negociar seus preços junto às concessionárias. E os consumidores em geral pagam a conta de energia, ainda que ela pareça recair sobre os empresários, pois seu custo é repassado nos seus produtos.

Considerando, ainda, as novas tecnologias, e as barragens antigas (chamadas energia velha, que já foram pagas), que são muitas em Minas Gerais, vê-se que existe uma super exploração no preço da energia, na sua dupla função: ser, ela mesma, uma mercadoria valiosa, vendida à população, numa sociedade cuja dependência da energia se intensifica cada vez mais; e ser um elemento precioso na determinação da competição entre as empresas, por entrar como fator determinante da produtividade. Isso tem conseqüências práticas, pois significa que, na crise capitalista, como a que existe hoje, sobrevive (ou ganha mais) a empresa que controlar as fontes de energia, conquistando, assim, um custo mais baixo.

Essa situação é que explica, por exemplo, a disputa mundial dos capitalistas pelo petróleo, pelo gás, por todo e cada trecho de rio, e pela terra. Todas as regiões do mundo, como o Iraque, a Líbia, a Amazônia, ricas em fontes de energia diversas, tornam-se, automaticamente, regiões de conflito em potencial, que poderá ser camuflado ou aberto.

Nessa corrida louca pela energia, prioritária para a acumulação capitalista, não há nenhuma diferença entre o comportamento dos setores privado e público, ao menos dentro dessa estrutura de estado burguês. A Vale, privada, tem a mesmíssima lógica da Cemig, uma empresa estatal. A ANEEL, uma agência reguladora, não regula absolutamente nada; ao contrário, é ninho dos interesses do estado burguês e das empresas. Dizer que os detentores do poder político no estado de Minas Gerais, hoje, vão controlar as empresas, e suas negociatas, é o mesmo que acreditar em gambá cuidando de ovos.

Veja-se o absurdo! Por um suposto erro da ANEEL, as empresas do setor elétrico brasileiro recolheram, para mais, 50 bilhões do povo. Esse dinheiro, que deveria ser devolvido, continua no cofre das empresas por clara omissão, e interesse, do estado brasileiro. De fato, no estado burguês, como o nosso, com raras exceções, há um trânsito livre entre setores público e privado.

À super exploração dos consumidores se junta, ainda, a super exploração dos trabalhadores. A Cemig tinha 20 mil operários há 10 anos, hoje os serviços aumentaram e o número se reduziu para 8 mil. Essa redução leva à ocorrência de convocações arbitrárias. Um simples vendaval em BH, no dia 9/05/2011, obrigou os operários a trabalharem sob pressão, e por horas seguidas, no final de semana dos dias 11 e 12 de maio. E os salários, também, vieram sendo reduzidos. Hoje o piso salarial de um trabalhador da Cemig é de 720 reais.

 Isso tem um impacto direto nos acidentes de trabalho, numa área por natureza de risco, e na convivência familiar. Com efeito, a precarização das condições de trabalho, com salários baixos, as horas seguidas de trabalho sem descanso e a terceirização resultam na piora da qualidade dos serviços e, o mais grave, na morte de trabalhadores. Morre um trabalhador a cada 30 dias na Cemig por acidente de trabalho. Apenas neste ano já foram 5 acidentes fatais. Isso sem contar os acidentes vários que deixam seqüelas para a vida toda.

Todo essa super exploração é arquitetada a médio e longo prazos nos gabinetes e jantares da classe dominante, e tem como objetivo primeiro a acumulação dos acionistas da Cemig, na sua maioria estrangeiros.

Embora oficialmente estatal, toda a lógica da Cemig hoje é privada. Uma das suas importantes funções para o capital, enquanto empresa estatal de índole privada, é ser ponte entre o privado e o estatal nas circunstâncias vantajosas para o setor privado: uso do público em benefício particular! Essa concupiscência existe, a título de exemplo, entre Vale e Cemig nas barragens de Aimorés, Capim Branco e Funil.

Nesses casos, o que se dá, ao contrário do que muitos pensam, não é uma parceria entre o público e o privado; o que ocorre, realmente, é a concupiscência, o aproveitamento da estrutura do estado por parte dos grandes capitalistas presentes tanto nos postos de mando e de decisão do estado quanto nas referidas empresas.

Os capitalistas não têm limites! Para o trabalhador, a lei é dura, mas é lei; para o capitalista, a lei é dura, mas dilata. Veja o desrespeito que houve ao trabalhador por ocasião do licenciamento da barragem de Irapé, no Vale do Jequitinhonha. Num dia, firmou-se o compromisso de não se encher o lago enquanto não se cumprissem todas as condicionantes, entre as quais o reassentamento das famílias atingidas. No dia seguinte, porém, pela manhã, a Cemig iniciou o enchimento do lago, e ninguém foi capaz – ou não quis – detê-la.

Mas é claro que os capitalistas, bem articulados com o estado, não perseguem seus interesses apenas atropelando as leis. Cuidam, também, de adequá-las, devidamente, a seus interesses, e adequar-se a elas, quando, naturalmente, lhes for conveniente. Existe uma regra atual de que o BNDES, banco público, somente pode financiar consórcios público-privados quando o privado é majoritário, com o argumento de que isso estimula a iniciativa privada. Pois bem! Nos consórcios entre Vale e Cemig, em Aimorés, Capim Branco e Funil, a Vale é majoritária, com participação de 51%.

Em 2015, vence a maioria das concessões das barragens. Por um lado isso significa uma oportunidade da sociedade organizada cobrar sua dívida e questionar esse modelo, que leva a classe opressora a apropriar-se de bens estratégicos à soberania de um povo; que leva à transferência de renda do trabalhador – muitas vezes, boa parte do que é sua comida – para acionistas privados, através, por exemplo, das tarifas; e precarização do trabalho. Ao mesmo tempo, esse conjunto de fatores, como cães atentos e acostumados ao filé da acumulação, pode levar a uma busca frenética, ainda que sutil, pela privatização de outros setores estratégicos do setor elétrico. A piora a cada dia na qualidade dos serviços da Cemig, proposital ou como conseqüência direta das exigências da super exploração, poderá ser um argumento a mais a favor da privatização. Isso poderá reafirmar no povo o sentimento de que serviço bom é serviço privado. Mesmo sabendo que isso significa mais tarifas, e ainda mais salgadas. Como o ditado desesperado, aplicado aos políticos: ‘esse rouba, mas faz’!

A água, uma das fontes de energia, será cada vez mais disputada! A tendência é que os projetos de barragens se multiplicarem. Isso porque, no que pesem os impactos de toda ordem, sob todos os aspectos, a hidroeletricidade é extremamente vantajosa. No modelo atual, em que a referência do preço da energia são as térmicas, o custo mais baixo da hidroeletricidade a torna atraente. Ela é, também, tida por amplos setores como energia renovável, no sentido de que o lago se esvazia com o turbinamento das águas, mas vai se enchendo novamente com a reposição das águas, que chegam pelos rios. Naturalmente esse conceito de energia renovável esconde o fato patente de que a disponibilidade de água vem diminuindo consideravelmente nos cursos dos rios. Ou porque o volume diminuiu, ou porque, tão poluídas, as águas se tornam impróprias até para geração de energia.

O discurso capitalista, de viés ambiental, da proteção das fontes e da não poluição das águas, embora essas práticas sejam imprescindíveis, precisa alertar em nós a pergunta: água para quê e para quem?

Outro fator que torna a hidroeletricidade atraente é o tratamento diferenciado às chamadas PCHs – Pequenas Centrais Hidrelétricas, as quais se enquadram, na política atual, entre as fontes de energia alternativas. Assim, passam a ter incentivos privilegiados do estado brasileiro, que vão desde financiamentos públicos até à facilitação nos processos de licenciamento ambiental. É claro que do ponto de vista do MAB, e de vários setores da sociedade, os conceitos de energia renovável e alternativa, assim compreendidos e aplicados, escondem enormes interesses e se constituem, em última instância, uma farsa.

Outro aspecto é que, fundamentalmente, a questão central do setor elétrico não é, para nós, de cunho tecnológico, de matriz energética. A questão central é quem manda, quem decide o que fazer com os bens naturais e a serviço de quem eles são colocados, isso expresso na pergunta.

Por fim, ainda pesa a favor da hidroeletricidade a sua eficiência energética, ou seja, a quantia de energia dispensada na produção da própria energia. Para se ter idéia, a relação entre a água e o petróleo é da ordem de 30 para 70%. Isso explica porque o conflito em torno da água, já intenso, vai se tornar ainda mais forte num futuro próximo.

Esse processo de super exploração e de lucros extraordinários revelam, cada vez mais, a contradição do sistema. O atingido e o ambiente, nessa lógica, entram como custo de produção. Aplica-se aí, portanto, a lei do mercado: menor custo para maior lucro. Isso significa que o direito das famílias e os aspectos ambientais, nessa conjuntura, serão ainda mais sacrificados.

Outra conseqüência, que já se faz sentir, é a precarização do trabalho, com o viés da terceirização. Na Cemig, diante dos dramas dos acidentes fatais, ou que deixam seqüelas para a vida toda,  membros do Sindieletro desabafam: ‘não agüentamos mais!’.

Os acidentes fatais, infelizmente, não são exclusivos da Cemig nem de Minas Gerais. Na Petrobrás morre um trabalhador por acidente de trabalho a cada 19 dias. Nos processos de mineração, de construção de barragens, cresce o número de morte de trabalhadores, embora quase sempre eles não sejam revelados. Essa lógica capitalista da produção e acumulação está moendo os trabalhadores.

Essa situação, que se torna cada vez mais dramática, são sintomas apenas de uma questão mais profunda: o capital, proclamado e aclamado por alguns como companheiro de caminhada, de mãos dadas com o trabalho, volta-se contra ele, com extrema violência, no seu momento de crise. A precarização dos serviços e do trabalho está associada à crise capitalista. Nesse aspecto, sua violência é, ao mesmo tempo, sintoma de fraqueza. Quanto mais moribundo, mais violento, mais perverso! Mas, também, mais vulnerável!

Que ninguém se engane! A precarização não está apenas nos setores da energia, da mineração onde, recorrentemente, e com mais freqüência, acontecem acidentes fatais. Morre-se de tantas outras maneiras! Há muitas doenças associadas ao ambiente de pressão no trabalhão que matam, diariamente, ainda que os diagnósticos não mostrem o nexo causal. No interior das fábricas, das estruturas de governo nos diversos níveis, sabe-se lá o que acontece com o trabalhador. Não é a toa as greves que vão pipocando por todos os lados: professores da rede estadual em MG; policiais militares e civis, historicamente divididos, que se unem numa passeata em BH, reunindo mais de 10 mil pessoas das corporações; em diversas prefeituras do interior do estado, funcionários públicos fazem greve.

É por essa mesma questão que pipoca manifestação em diferentes partes do mundo. Os casos da Europa são emblemáticos. Justamente onde houve um avanço histórico do chama Estado do Bem Estar Social, com importantes conquistas dos trabalhadores, agora esses mesmos trabalhadores saem às ruas, em centenas de milhares, reivindicando reposição salarial, ou se debatendo, num último esforço, para a manutenção do seu posto de trabalho.

No Brasil, as revoltas nas barragens de Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, as manifestações dos bombeiros, no Rio de Janeiro, e as diversas manifestações em MG, todas apontam na mesma direção, e se associam ao retrocesso nos direitos dos trabalhadores. Cai por terra a tese do consenso, da harmonia entre capital e trabalho, de que luta de classes é coisa do passado, de que patrão e empregado precisam um do outro e podem, ambos, sair ganhando. Não! Capital e trabalho são, intrinsecamente, pela sua natureza, irreconciliáveis!

Toda essa conjuntura hoje é conseqüência de um projeto capitalista de sociedade em crise. E cada vez mais fica claro: no momento em que se fecha o cerco; na hora em que, ainda que de longe, se aviste um comprometimento dos lucros extraordinários dos acionistas; no tempo em que se coloque em risco o controle dos territórios, de suas riquezas, dos bens naturais, o sistema, em nome do capital, se volta contra o trabalhador e contra o povo sem dó nem piedade.

Nesse aspecto, os movimentos rechaçam as teses da direita, como a que defendera sempre o Senhor Delfim Neto, de que o bolo precisa crescer para, depois, ser repartido. Essa direita, representada no mundo político por FHC, Serra, Aécio, Anastásia, e tantos outros! Isso não acontecerá, jamais! Ao mesmo tempo, os movimentos são, hoje, obrigados a reconhecer que as teses de uma esquerda tacanha estão, também, equivocadas. O Partido dos Trabalhadores e seus dirigentes máximos se equivocaram  nos processos de chegada ao poder, se é que, realmente, desejavam tomar o poder. Simplesmente porque chegar ao poder é completamente diferente de tomar o poder. Dirceu, Lula, e hoje Dilma, todos estão equivocados! Os comemorados e bem vindos avanços nos programas sociais têm vida curta, e irão apenas até onde sejam garantidos os lucros extraordinários da classe dominante. No dia em que isso fique comprometido, a faca passa, afiada, nos ganhos dos trabalhadores.

Ninguém deve se apressar e dizer que as manifestações que ora começam a pipocar por todos os lados, nos diversos setores, sejam sinais de um novo tempo. Não! Por enquanto, apenas revelam a dor do estômago: os trabalhadores não estão suportando! E que estão dispostos a defender o seu posto de trabalho, o seu salário, na sua categoria ou corporação.

As mazelas capitalistas, só por si, não provocam a mudança! Por isso é equivocada a tese do quanto pior melhor. Quanto pior é pior mesmo, pois a classe trabalhadora sofre mais. No entanto, as mazelas cumprem um papel importante, pois desnudam a perversidade intrínseca desse sistema. Após tanta promessa, quase do céu aqui na terra, a classe trabalhadora, a única responsável pela produção de toda a riqueza em qualquer parte do mundo, é colocada na berlinda. E assume todo o ônus da crise do sistema.

Nesse sentido, as mazelas revelam as contradições. Criam o clima, semeiam a pólvora, mostram o conflito definitivamente instalado entre capital e trabalho. Lembra o fato de que a história da sociedade é a história da luta de classes. Cabe à classe oprimida, porém aproveitar essa onda, esse clima, e dar um passo adiante: da luta econômica à política, da fragmentação à unidade, das reformas de base à revolução do sistema.

A classe trabalhadora não é responsável, nesse aspecto, apenas pela produção de toda e qualquer riqueza do mundo. Ela é, também, responsável pelas mudanças profundas. Pois a classe dominante, no máximo, espalha a pólvora. Cabe á classe trabalhadora riscar o fósforo.

 

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