A novilha, o machado e o martelo comunal

 A natureza é feita de contrários na árdua luta pela sobrevivência. A história também! Vence o mais forte! É ilusão imaginar-se que o dominador abrirá mão de suas regalias, resultado […]

 A natureza é feita de contrários na árdua luta pela sobrevivência. A história também! Vence o mais forte! É ilusão imaginar-se que o dominador abrirá mão de suas regalias, resultado da exploração

Por Claret Fernandes, militante do MAB e missionário na Prelazia do Xingu

A machadada fatal acertou-lhe bem o meio da testa. Ela desmontou no chão, trêmula. A faca afiada correu e abriu-lhe a pele dura, do lado do pescoço, no ponto da veia, e verteu sangue vermelho, inicialmente em esguichos, depois escorrendo, escorrendo, por mais de dez minutos. Aquele vermelho forte contrasta com a cor dela, cinza-escura. Formou-se uma poça no chão, na parte mais baixa do solo. À medida que o sangue saía, ela ia suspirando, cada vez mais fraquinha, até aquietar-se por completo.

Por mais que a ciência explique, custa-me compreender o que separa a vida da morte, no seu ponto-limite. Há um quê de mistério, algo incompreensível, uma energia que anima todo ser vivente e que, de repente, se esvai, e a vida se vai junto. Sobra apenas um toco seco ou um corpo.

Antes da machadada, ela dera trabalho, e sofrera; coisa de causar náusea a quem tenha mais carinho aos animais que aos humanos e imagine que vai salvar o mundo com os nichos ecológicos. Sua inquietação, buscando escapar de um lado para outro, mostrava que, no seu íntimo, pressentia aquele fim trágico. Qual ser vivo não pressente?

Ela se achava entre as outras companheiras, todas presas no curral, numa tarde de quinta-feira. Eram 12 de dezembro. Até aí, nenhuma novidade! Aparece-lhe o laço. Depois aquela arma roda, roda, e vai cair-lhe justo na cabeça. Foi aí que se tocou.

Pensou muito, em segundos, na sua cabeça-animal. Muita coisa se reavivou nela, como em filme. Lembrava-se, perfeitamente: aquela mesma cena já havia ocorrido outras dezenas de vezes, ali mesmo. A diferença é que agora ela, nova, sadia, nem uma cria, era a bola da vez.

O trauma e o desespero lhe ferveram o sangue. A sua cabeça balançou para um lado e para outro e depois, de propósito, como a proteger-se, seu focinho foi ao chão. Inicialmente a tática funcionou, e aquilo lhe trouxe alguma esperança. O laço se desprendeu dos seus chifres, curtos e finos.

Mais que depressa, ela procurou misturar-se entre as companheiras. Nos momentos de aperto, decisivos, o aconchego das companheiras e companheiros é a maior proteção. Também a maior proteção dos lutadores é o povo.

O mesmo ritual se repete. O laço roda, roda e, em meio a tantas cabeças, ele voa, faz curva no ar, e cai justo na sua. Parecia mesmo uma sina! Era carta marcada!

Dessa vez, o laço lhe prende o pescoço.

Aquele pressentimento de morte a toma por completo. O sangue, que ferve, lhe empresta uma força descomunal.

A tranqueira do curral se abre. As companheiras saem assustadas, correndo, esbarrando-se umas nas outras. Ela vai acompanhando, fazendo-se descrente do que via.

 A verdade nua e crua da vida é dura demais! A natureza é feita de contrários na árdua luta pela sobrevivência. A história também! Vence o mais forte! É ilusão imaginar-se que o dominador abrirá mão de suas regalias, resultado da exploração.

 Mais forte, porém, não é sempre o que tem o físico mais forte. Senão o boi não seria dominado pelo homem. Nem o que tem o maior império. Senão os impérios não cairiam. Mais forte são os que vão além do apetite, costumeiro e comedido; aqueles e aquelas aprendizes da rebeldia, que descobrem em si mesmos a fome do ‘pão’, no estômago que ronca, e a sede de liberdade, dois elementos universais.

Após alguns poucos passos, a corda, já espichada, quase tinindo, lhe aperta o pescoço. Quanto mais puxa, mais sufocada fica. Então empaca. Vê uma companheira, e mais outra, e mais outra, passar à frente e sair ilesa para o pasto.

O olho dela se encharca de lágrima. Sua respiração se torna ofegante. Então começa a correr, correr, em círculo. Quanto mais roda, mais o laço se encurta, e vai-se enrolando ligeiro no mourão fincado no centro do curral. Tanto mais esforço, mais sua cabeça se aproxima do golpe mortal.

A língua lhe foge da boca, tão exausta está, e sai um mugido surdo do fundo de seu ser, feito pedido de socorro. De uma hora para outra para, olha o horizonte quase sem fim, o pasto, as companheiras assustadas do lado de fora da cerca, e abaixa a cabeça, como a entregar-se. É nesse exato momento que o machado antigo, pesado, cabo curto e tosco, lhe atinge a testa, bem no redemoinho, e lhe mistura os miolos, tonteando-a, caindo desacordada.

Depois do completo esgotamento do sangue, que é para a carne ficar boa e gostosa, dedos ligeiros apalpam-lhe a costela e, no local certo, a faca afiada lhe abre um corte na pele dura. O golpe vai da barriga às costas. Colocam-se folhas de coqueiro no chão, vira – se – lhe o corpo e faz-se o mesmo procedimento do outro lado. Cortam – se – lhe as patas e a cabeça, lançadas do lado de fora do curral.

Aquele corpo no chão, agora com as pernas abertas e a barriga para cima, mais se parece a um grande sapo inchado.

A faca continua com destreza inigualável, cortando-lhe a pele dura, da junção do rabo ao pescoço. Apenas se recorre ao machado para lhe vencer a resistência do peito, que guarda o que tem de melhor, o coração, bem protegido por um firme osso. A natureza tem seus artifícios (quase) perfeitos desenvolvidos ao longo de gerações.

Nada (quase) resiste, porém, ao machado da racionalidade quando manejado pelo Capital. Ele é capaz de transformar a natureza em ritmo acelerado, explorando o trabalho, e adestrando-a. Ele retira óleo do pré-sal, extrai minério nas profundezas da terra, voa sobre as nuvens, viaja sob as águas do oceano, barra o imponente Xingu.

 Mas será vencido! O machado do Capital será vencido! A precedência do capital sobre o trabalho baqueia na natureza e vitima, primeiro, a família-machado, a classe trabalhadora, a qual, ao mesmo tempo, é seu sustento e sua queda.

 Ambientalistas apocalípticos anunciam o fim da natureza, como da vítima no curral. Ledo engano! A natureza se recomporá, cipós viçosos andarão por sobre as redes de alta tensão construídas hoje, aviões serão carcaças de tempos passados, mansões nas cidades se tornarão esconderijos de onças e tecnologias de ponta se misturarão aos ossos ressequidos dos dinossauros. 

O machado do Capital será vencido muito antes da desforra da natureza. E a sua primeira vítima entre a família-machado, que ‘mata’ para alimentar-se (a classe trabalhadora explorada e empobrecida) já é o seu pesadelo.

Essa é a contradição! Que os machados, então, se unam organizados e, além da luta pelo alimento, que é justa, façam, também, a luta política, a luta pelo poder, que é necessária. A novidade estará no trabalho social com apropriação social; um mundo de tensões (equilíbrio completo é morte), mas sem exploração. Será o tempo do martelo comunal.

A questão supostamente ambiental é, no fundo, uma questão de classe.

Mas isso não se faz com discurso radical e língua afiada; faz-se com prática cotidiana e revolucionária, numa relação tensional: luta radical, exemplar, e muita ternura.

E por se falar em língua, voltando à ‘vaca fria’, a mão vai lhe puxando a língua para trás e, enquanto isso, a faca afiada, tão ligeira quanto cuidadosa, vai passando e soltando a membrana que prende a barrigada. As tripas, o bucho, tudo o mais vai saindo, inteirinho, e vai sendo empurrado para o lado.

O corte vertical e o horizontal por fim se encontram no formado de uma cruz, e as quatro partes se separam.

Manchas pretas se formam no céu. No início, minúsculas, quase impossível de se ver a olho nu. Depois vão crescendo, crescendo, e se aproximando. Circulam, circulam, lentamente. Seguindo um ritual, a cada volta a mancha fica mais perto da terra. São urubus!

Um deles, imponente, com um detalhe feito crista na cabeça, adianta-se, com sentimento de rei, pronto a banquetear-se com seus vassalos. A ilusão da superação da sociedade de classes possibilita essas coisas. Pousa no coqueiro, abre as asas contra o vendo, freando, até equilibrar-se na folha, trêmula do vento e da visita inesperada. Repara, repara, depois salta no chão e, a um sinal qualquer, em segundos, mais de uma centena de urubus colore o verde dos coqueiros, e do capim.

Explodem-se bombas, quase rebentando o tímpano de quem estivesse por perto. Os urubus voam em bando, mas logo circulam e voltam, disputando a carne ainda fresca. A mesma fome que os devora os encoraja, fazendo-os vencer o medo. Correr o risco.   

Aproxima-se um carrinho de mão. Os pernis, um por um, seguem rumo a uma árvore, sob cuja sombra ficam dependurados, presos pela perna a um galho espesso.

Mãos se dividem e se divertem, traquejadas, ligeiras, nos vários serviços. Enquanto umas pesam cada parte numa balança rudimentar, outras tiram o couro, outras descem a carne, deixando os ossos limpos.

Pedaços de carne se espalham pela mesa, larga e comprida. Precisam esfriar antes de ir para o freezer. Do lado, monta-se a máquina de cerrar osso e moer carne. Primeiro vai o pescoço, cortado em fitas. A luz fraca da energia precária em toda a região, apesar do farol de Belo Monte, deixa a máquina com pouca força. O senhor Sabino (75), que chegara  em 1946, até hoje não tem energia elétrica em sua moradia.

Fim da tarde, tarefa findada. Um camponês leva duas partes para sua casa, as outras duas são empacotadas e vão para o encontro do MAB, no Barraco Queimado.

O capim mascado e ruminado, que virou carne, agora empresta energia que gera consciência. Método (concepção) já não é externalidade. Falar que temos problema no método é confessar a necessidade de clareza ideológica enquanto processo continuado, pois ninguém de nós, absolutamente ninguém, pode considerar-se vacinado para sempre contra o laço do desenvolvimentismo, e do vírus da dominação.

Em 2014, haverá Copa. A FIFA mexe com quase tudo no mundo inteiro, menos com futebol. Também nosso jogo é outro: organizar o nosso time e realizar trabalho popular enquanto processo numa sociedade em conflito, na pedagogia da semente (do menor ao maior), até os confins da terra.

O nosso jogo é a libertação do povo! 

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