ARTIGO | Arpilleras e a poética da resistência amazônica: o bordado como manifesto
A artista Hilda Souto escreve sobre as arpilleras das atingidas do Brasil e destaca que “ao bordar juntas, essas mulheres produzem um corpo coletivo de resistência, uma comunidade estética e política que se reconhece na dor, mas também na potência da criação”
Publicado 21/10/2025 - Actualizado 03/11/2025

Estando às portas da COP-30, Conferência das Partes (Conference of the Parties), evento que o Brasil sediará em Belém, no Pará, de 10 a 21 de novembro de 2025, líderes mundiais se reunirão para discutir questões relacionadas às mudanças climáticas. Será a primeira vez que o Brasil sediará a conferência, e a primeira vez que um evento da COP ocorrerá na região amazônica.
Concomitantemente a esse encontro, ocorre em Salzburg, Viena, de outubro de 2025 a abril de 2026, uma exposição das arpilleras do MAB. O catálogo apresenta a mostra e a aderência ao evento que ocorrerá em Belém:
“Alerta Amazônia! — Quando o Tecido Fala” traz arpilleras – tapeçarias de parede intrincadas com bordados em patchwork -, da região amazônica brasileira para a Áustria. A exposição mostra como essa arte têxtil única, originária do Chile como meio de resistência durante a ditadura militar, encontrou um novo e poderoso significado na Amazônia. A organização brasileira MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) é responsável pelas exposições. Há mais de 10 anos, as mulheres do MAB utilizam o método arpillera para contar suas histórias. Cada peça é um testemunho de resiliência, resistência e esperança. Elas mostram as histórias de mulheres que processam suas experiências com mudanças climáticas, destruição ambiental e exploração de recursos, tornando sua luta pela sobrevivência e visibilidade comunitária.
É comovente perceber como um fazer artesanal se transformou em uma linguagem de resistência reconhecida mundialmente. Não é incomum que, sob a sombra de regimes autoritários ou contextos de opressão, a arte encontre frestas por onde respirar. Alguns escrevem desde a prisão, outros desenham, pintam ou compõem; há também as que bordam, costurando ponto a ponto aquilo que a censura tenta calar. As linguagens artísticas, nesses momentos, tornam-se abrigo e voz. As arpilleras são forças vitais: sustentam as mulheres e suas famílias, alimentam suas lutas e prolongam o grito por uma vida digna quando a palavra é insuficiente.
O bordado vira manifesto. Ao bordar juntas, essas mulheres produzem um corpo coletivo de resistência, uma comunidade estética e política que se reconhece na dor, mas também na potência da criação.
Há ainda o que podemos chamar de poética do testemunho. As arpilleras testemunham. São fragmentos da vida interrompida, costurados como quem tenta recompor o tecido social rasgado. Cada ponto contém uma tentativa de dizer o indizível, de inscrever no visível aquilo que o discurso oficial quer apagar. No contexto do MAB, as arpilleras são tanto ato de lembrança quanto ato de luta. Elas não apenas rememoram as perdas causadas pelas barragens – casas, rios, histórias -, mas também anunciam uma outra possibilidade de futuro. Ao serem exibidas, compartilhadas e reconhecidas, essas obras tornam-se bens de memória comunitária, porque não pertencem apenas às bordadeiras, mas a todas as pessoas que se veem refletidas na resistência que elas narram.
As arpilleras, na arte contemporânea brasileira, constituem um território estético e político onde a arte deixa de imitar e passa a agir. Elas se manifestam no modo de fazer, na matéria escolhida e na relação com o público, tornando a obra um lugar de encontro e de reinvenção social. Assim, elas são a âncora numa realidade concreta, uma realidade de desigualdade, mas também de invenção poética. Ao incorporar essa dimensão, as arpilleras reiteram a vocação da arte como lugar de transformação: um espaço vivo, inacabado e profundamente humano.
Quero expressar minha gratidão à Maria Madalena Andrade de Oliveira, Claudete Almeida Costa, Lucielle de Sousa Viana e Claudineia Santos Oliveira, que nos emprestaram seus talentos para levar ao outro lado do oceano o desejo de todos os brasileiros de ver a nossa floresta respeitada, um bem comum que, se for destruído, afetará todos, sem exceção.
- Hilda Souto é artista visual, designer e professora. Atualmente pesquisa arte brasileira em contextos ditatoriais.
