Carta dos Atingidos do Vale do Jequitinhonha e Rio Pardo

Com o lema “Nossa cultura é nossa identidade, e nossa identidade é nossa resistência!”, documento reforça resistência a projetos de alto impacto, exige direitos, soberania territorial e participação social, com medidas para saúde, água, energia e proteção ambiental

Encontro do Vale do Jequitinhonha e Rio Pardo, em Araçuaí (MG), reuniu atingidos e atingidas de comunidades tradicionais para debater crise climática e direitos dos territórios. Foto: Joyce Silva / MAB

Nós, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), presentes em diversos estados do Brasil e internacionalmente, nos reunimos no município de Araçuaí, nos dias 08, 09 e 10 de agosto, para reafirmar nosso compromisso com o território e com as comunidades atingidas. Construímos uma carta onde aconselhamos ler, conhecer, e compreender na íntegra

Nossa força vem da cultura, dos saberes ancestrais e da resistência das atingidas e dos atingidos. Sofremos com o racismo ambiental e projetos impostos de cima para baixo, mas seguimos firmes, convidando todos a caminhar conosco por um futuro mais justo, digno e próspero.

Leia a carta na íntegra

CARTA ABERTA DOS ATINGIDOS E ATINGIDAS DO VALE DO JEQUITINHONHA E RIO PARDO

“Estamos chegamos do chão dos quilombos,
estamos chegando no som dos tambores,
dos Novos Palmares nós somos,
viemos lutar.”
(Á de Ó – Milton Nascimento)

Entre os dias 08 e 10 de agosto, em Araçuaí (MG), reunimos mais de 50 atingidos e atingidas organizados no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), oriundos de 13 municípios do Vale do Jequitinhonha e Bacia do Rio Pardo, além de representantes de organizações e de apoiadores. Foi um momento de reencontro em que celebramos nossa diversidade (agricultores, ribeirinhos, quilombolas, indígenas, trabalhadoras e trabalhadores urbanos) e recordamos nossas caminhadas, reafirmamos nossas tradições, modos de vida e objetivos comuns, alimentando o sentimento de perseverança na defesa de nossos direitos, da Vida e dos territórios. 

Ao longo da história, nossos territórios foram atravessados por grandes projetos pensados e implementados de cima para baixo: a exploração mineral desde o período colonial, a destinação de terras públicas para monocultura de eucalipto e a construção de barragens (Calhauzinho, Usina Hidrelétrica (UHE) Itapebi, UHE Irapé e Setúbal) para interesses externos. Projetos que transcorreram sem envolvimento do povo, violaram sistematicamente direitos, sem atender os interesses e as demandas comunitárias (como acesso à água), desconectados de um projeto soberano do país e presos ao modelo primário agroexportador. Em contraponto, nossa identidade regional foi forjada na defesa de nossas práticas, de nossas culturas e territórios, com o convívio, cuidado e preservação dos rios, da biodiversidade e do meio ambiente.   

Atualmente, observamos a confluência de várias crises na humanidade (econômica, social, ambiental, climática, entre outras) que colocam em risco diversos aspectos da vida humana e do planeta. Neste contexto, há uma disputa pela hegemonia mundial: de um lado as forças imperialistas e neocolonialistas dirigidas pelos Estados Unidos e de outro lado à ascensão de uma coalizão entre países emergentes, unificados nos BRICS (fundado inicialmente pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e que já reúne 21 países). O aumento das desigualdades sociais, o avanço de práticas predatórias, somado a ocorrência de eventos climáticos extremos – como as secas na Amazônia em 2024 e o processo de desertificação do Vale do Jequitinhonha – aceleram e agravam a crise social, climática e reforçam o racismo ambiental. 

O novo ciclo da mineração, tendo a exploração do lítio como carro chefe, avança no mesmo sentido:

i) o atual governador de Minas Gerais usa o lítio e as riquezas minerais da nossa região como barganha política para ganhar popularidade nacional, vender nosso território e exterminar nossa cultura ao propagandear o “vale do lítio”;

ii) atende a ganância pelo lucro imediato de grandes empresas e interesses de outros países, enquanto viola direitos, sobretudo de povos e comunidades tradicionais e;

iii) gera o aumento no custo de vida, agrava a escassez hídrica e traz impactos à saúde da população (como o aumento de doenças respiratórias). 

O Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido como PL da Devastação, é a bala de prata sobre o meio ambiente, abrindo caminhos para mais crimes socioambientais, como os de Mariana e Brumadinho e as enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul. Ainda que o presidente Lula tenha vetado pontos fundamentais, devemos seguir atentos e atentas, pois essa disputa segue em curso, e o Vale do Jequitinhonha e Rio Pardo estão sob ataque direto daqueles interessados na devastação das leis e órgãos ambientais, para fazer avançar ainda mais seus projetos.

Por isso, seguimos convictos que somente com a organização popular, com unidade e integração de todos os povos do território, poderemos enfrentar este modelo exploratório que contrapõe nossos modos de vida. Sendo assim, considerando o contexto atual e os debates realizados ao longo do nosso encontro, apresentamos as seguintes reivindicações, propostas e compromissos:

  1. Regulamentação da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB, Lei 14.775/2023) com participação direta do MAB, de modo a garantir sua implementação e eficácia à população atingida do Vale do Jequitinhonha e Rio Pardo, por meio da efetivação do direito à Assessoria Técnica Independente (ATI), da criação do Órgão Nacional, com a participação das pessoas atingidas e da criação de um Fundo com fonte de financiamento para programas, orçamento, incentivos e subsídios para as pessoas atingidas; 
  2. Inserção das pessoas atingidas nos programas sociais como público prioritário de atendimento: políticas, programas e ações públicas federais e estaduais voltadas à população atingida por barragens, em especial programas de saúde, de cestas de alimentos, moradia, produção, cisternas;
  3. Pela definição de tarifas de energia e gás a preços justos para a população atingida, a partir de iniciativas como o Projeto Veredas Sol e Lares, que culminou na implantação de uma usina fotovoltaica flutuante no reservatório da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Marta, que organizou a maior associação popular de geração distribuída da América Latina e beneficia centenas de famílias com compensação de energia elétrica;
  4. Seguir na defesa da Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão, dos direitos do Povos e Comunidades Tradicionais, da garantia da manutenção e reprodução de seus modos de vida, da cultura e de seus territórios;
  5. Participar ativamente na luta pela Soberania Nacional, reivindicando que projetos minerários, especialmente em relação aos minerais críticos e terras raras, estejam inseridos num projeto de industrialização do país, de desenvolvimento de ciência e tecnologia, com distribuição de riquezas e controle popular;
  6. Compromisso na defesa das empresas estatais, como a Cemig e Copasa;
  7. Contribuir com a articulação e na unidade das organizações populares e da classe trabalhadora, em especial junto aos povos e comunidades tradicionais;

O Vale é do Jequitinhonha! 

Território, água e energia: com soberania, distribuição da riqueza e controle popular!

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