Um retrato entre a realidade e a poesia
Publicado 30/07/2025 - Actualizado 29/09/2025
“Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre,
mas porque primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite…
Quem pode vigiar os sonhos da moça?
Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem”
Carlos Drummond de Andrade, em Presépio – Contos de Aprendiz

Sol quente, brisa do mar, mergulhos e caminhadas na praia; ler na rede ou simplesmente olhar sem prazo para o horizonte azul. Dádivas do viajante pelo litoral, seja em férias ou a trabalho, que podem render histórias nas rodas, cliques e likes.
Dentro desta paisagem ainda há as presenças arquitetônicas, icnográficas, que revelam a história, o pensamento, a criatividade e o labor em pedra, barro e madeira. As janelas, as portas, as cores, os tamanhos. Chama atenção, por exemplo, na Igreja de São Bernardo de Claraval, em Alcobaça:12 cadeiras dispostas no altar que carregam os rostos dos 12 apóstolos e de Jesus Cristo (esta separada para o padre). Ali tem um Judas Iscariotes de turbante, o único com este diferencial sobre os cabelos ou a falta dele. Haverá uma relação com o alardo, teatro dramático folclórico na vizinha Caravelas?
São duas facções inimigas: os “soldados mouros”, que roubam a imagem de São Sebastião, levando-a sorrateiramente para o outro lado do rio que banha a cidade; e os “soldados cristãos”, guardiões da fé. O assunto merece outra crônica, se for de interesse.
O que me inspira e demanda nestes deslocamentos pela vida é a paisagem humana. Quem são estas pessoas, onde vivem, se alimentam, como rezam, como são explorados? De onde vem aquele canto sutil que se ouve de longe em algum barco? Por que há escritos estranhos nos muros das casas em alguma viela pobre? Me pergunto sobre as gentes, seus modos, sonhos e necessidades.
Mulheres que acordam no começo da madrugada para limpar o marisco. Algumas andam quilômetros, no calor ou no frio, até o local onde se sentam em duplas, frente a frente, para limpar o que garante o alimento para elas e seus filhos. Recebem pouco de quem as contratam, pessoas que moram ali mesmo e que revendem também sem grande valor, até o pescado chegar em mesas ricas dentro e fora do país. Os que comem não sabem que o salgado também vem de lágrimas.

Elas denunciam seus problemas, o direito que é negado. Muitas cansadas e sujas, envelhecidas pelo tempo e pelo sol escaldante, acompanhadas dos netos que também criam. Uma ainda no resguardo do filho tão pequenino de 29 dias. Elas enchem as reuniões, são as vozes principais. Todas mostram indignação e coragem, contam suas histórias de abandono, adoecimento, exploração. Contam também seus sonhos, para si e para a comunidade.
Nenhuma delas chama Mariana. Ainda bem. Seria para ela outra lembrança diária de que mineradoras cometeram um crime em um lugar também cheio de mulheres de lutas e tradições seculares. Parte das lágrimas que regam este caminho são causadas por um rompimento que aconteceu em 5 de novembro de 2015. “Uma peste jogada no mar”, alguém resume. A Samarco, a Vale e a BHP Billiton também deixaram seu legado ali, sua marca de destruição chamada sutilmente de “pluma de rejeitos”.

Mucuri, Alcobaça, Prado, Nova Viçosa e Caravelas. O mar não tem comportas. As mulheres que trabalham de madrugada agora se levantam pelo reconhecimento: somos atingidas! Movimento popular, organização de base, ancestralidade e futuro no mesmo caminho. Rostos que estão e estarão entalhados na nova história que começa.
Thiago Alves é jornalista e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais. Atua ativamente no campo das lutas populares e, entre uma tarefa e outra, observa as pessoas e paisagens redor, buscando perceber a beleza do cotidiano, que vira prosa simples, crônicas sem pretensão.
