Entrevista | Thiago Mioto: “Comunidades da Amazônia ficaram sem qualquer acesso à água potável por um longo período, situação que não pode ser tolerada em nosso país”

O defensor público pede urgência no atendimento de populações em situação de insegurança hídrica em Rondônia e conta sobre desafios das instituições de justiça para garantir os direitos das populações atingidas pela seca extrema, a partir da mobilização junto a movimentos sociais, como o MAB

O defensor Thiago Mioto em reunião com comunidade Vila Nova do Teotônio, no Baixo Madeira. Foto: divulgação

Desde o último mês de julho, a população das comunidades ribeirinhas que vivem às margens do Rio Madeira, em Porto Velho (RO), enfrentam um dos períodos mais críticos de sua história. A seca que atinge Rondônia tem deixado as mais de 50 comunidades instaladas ao longo do curso d’água em situação de calamidade. Em setembro, a cota do rio caiu para 25 cm, a menor desde 1967, quando começaram as medições. Diante da situação, falta água, alimentos, medicamentos e transporte para os atingidos.

Neste contexto, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem atuado em articulação com instituições de justiça, como a Defensoria Pública, pressionando os órgãos competentes para implementarem ações emergenciais de atendimento à população, e também elaborarem planos de atuação que possam prevenir situações de calamidade, já que as secas severas se tornaram recorrentes na região.

Na última quarta, 04, a Justiça Federal, em resposta à ação coletiva patrocinada pelo Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União (DPU), determinou que os governos (federal, estadual e municipal), distribuam alimentos e água potável para a população do Baixo Madeira, imediatamente. A ação foi protocolada depois de recomendação direcionada aos órgãos públicos que não foi atendida a contento. Para Thiago Mioto, diante da intensificação das mudanças climáticas, é inconcebível que os governos deixem as populações atingidas desassistidas, como aconteceu em Rondônia. Segundo o defensor, a atuação do poder público precisa ser mais preventiva e mais efetiva. Confira entrevista na íntegra:

Direito à saúde, direito à água, direito à alimentação adequada, direito à moradia. São inúmeros os direitos que as mudanças climáticas já estão afetando. As violações tendem a se agravar se o cenário atual não for revertido.

A Constituição da República de 1988 possui uma grande preocupação com o cuidado ao meio ambiente, já trazendo a previsão de que sua proteção visa a sobrevivência não só das gerações atuais, mas também das futuras. A responsabilidade pela proteção ambiental é ampla, não só dos entes públicos como dos particulares. Diante do avanço das alterações climáticas, recentemente, foi promulgada a Lei nº 14.904, de 27 de junho de 2024, que estabelece diretrizes para a elaboração de planos de adaptação à mudança do clima. A legislação ainda não é a ideal, mas já existem previsões e instrumentos importantes para atuação nos casos de grande impacto ambiental.

Mais importante que alteração da legislação, talvez seja a efetiva implementação das medidas já previstas pelos entes públicos, tal como o fortalecimento dos órgãos de controle e da fiscalização ambiental.

No Baixo Rio Madeira, em Porto Velho (RO), o rio virou deserto e mais de seis mil ribeirinhos tiveram abastecimento de água comprometido. Foto: Luis Gabriel / MAB

Essas comunidades são também as que mais protegem o meio ambiente, ao contrário do que ocorre na maioria das grandes propriedades de terra. Por isso, a importância da proteção desses grupos, já que é positivo para o meio ambiente e toda a sociedade a permanência deles em seus territórios.

A Defensoria Pública da União (DPU) tem tido importantes atuações em causas de grande impacto, como no caso do rompimento da barragem da Vale S.A. em Brumadinho (MG) e nos danos causados pela empresa Braskem, em Alagoas. Na tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, a DPU coordenou uma força-tarefa chamada de Caravana de Direitos na Reconstrução do Rio Grande do Sul, projeto muito bem-sucedido.

As comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas e de pequenos agricultores foram as mais afetadas. Ocorreram iniciativas do poder público, municipal, estadual e federal, que promoveram algumas ações e assistência às populações atingidas. Em Rondônia, por exemplo, está havendo a entrega de cestas básicas pelo governo federal às comunidades mais afetadas. 

No entanto, essa atuação dos entes não se deu na dimensão necessária, considerando a urgência e a gravidade do que essas populações enfrentaram, tendo ocorrido manifesta falta de planejamento. Diversas comunidades ficaram sem qualquer acesso à água potável por um longo período, sem que os entes conseguissem levar água a essas pessoas, situação que não pode ser tolerada em nosso país.

Nesta semana tivemos uma importante conquista, que foi a decisão da 5ª Vara Federal de Rondônia, que concedeu a tutela de urgência na ação civil pública que teve por objeto a falta de água na Região do Baixo Madeira, em Porto Velho, onde vivem milhares de pessoas. Essa ação é um grande exemplo de como utilizar um instrumento judicial em favor de um grupo vulnerável que vem sofrendo um grande impacto causado pelas alterações climáticas.

O caso ilustra também a importância de uma atuação integrada da sociedade civil, de movimentos como o MAB, e de instituições públicas. No caso, a ação foi ajuizada pela Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal e Ministério Público do Trabalho.

Um ponto importante da decisão foi a determinação de que a União, o Estado de Rondônia e o município de Porto Velho“ apresentem e iniciem a execução de um plano coordenado e integrado para enfrentamento das crises hídricas e humanitárias futuras, contemplando medidas preventivas e de resposta, como construção de poços artesianos, instalação de cisternas, ampliação de sistemas de captação e distribuição de água e implementação de sistemas de filtragem; assim, devem os réus comprovar mediante reuniões entre os órgãos estratégicos dos entes requeridos, para que fixe o prazo de 10 (dez) dias para serem iniciadas, visando a implementação desse plano”. O entendimento do juiz federal demonstra que a atuação preventiva é fundamental para que tragédias causadas pelas alterações climáticas sejam minimizadas e não se repitam.

Para a Defensoria Pública da União, a aproximação com as demais instituições, com a sociedade civil e com os movimentos sociais é essencial. A DPU possui, em quase todos os estados do país, um defensor/a que ocupa o cargo de Defensor(a) Regional de Direitos Humanos, denominado de DRDH. Esse defensor possui uma atuação especializada em matérias de direitos humanos e causas coletivas, o que possibilita e tem por finalidade esse contato constante com os movimentos sociais. É justamente do contato com a sociedade civil que o defensor vai conhecer as principais demandas, as violações mais graves. Enfim, a realidade de cada local e de cada comunidade, suas prioridades e em quais áreas a incidência do defensor vai ser mais importante.

A defensoria pública tem avançado muito nos últimos anos, mas ainda falta uma melhor e maior estrutura. No caso da Defensoria Pública da União, o orçamento é muito baixo, se comparado com as demais instituições. Causas de grande impacto demandam, por exemplo, que a Defensoria tenha uma equipe multiprofissional, como assistentes sociais, engenheiros, peritos, etc., o que ainda quase não existe na defensoria. Além disso, o defensor precisa estar sempre presente nas comunidades, dialogar com a população, conhecer cada território. O que exige equipe de apoio estruturada e maior investimento na DPU.

Uma atuação preventiva mais efetiva e mais coordenada entre as três esferas da federação. Além disso, ouvir e permitir a participação da população atingida e dos movimentos sociais na construção dessas políticas e soluções é imprescindível. Muitas vezes, essa população detém muito conhecimento sobre quais são as medidas que necessitam ser adotadas em seu território para evitar essas tragédias.

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