Entrevista | Thiago Mioto: “Comunidades da Amazônia ficaram sem qualquer acesso à água potável por um longo período, situação que não pode ser tolerada em nosso país”
O defensor público pede urgência no atendimento de populações em situação de insegurança hídrica em Rondônia e conta sobre desafios das instituições de justiça para garantir os direitos das populações atingidas pela seca extrema, a partir da mobilização junto a movimentos sociais, como o MAB
Publicado 06/12/2024 - Atualizado 06/12/2024
Desde o último mês de julho, a população das comunidades ribeirinhas que vivem às margens do Rio Madeira, em Porto Velho (RO), enfrentam um dos períodos mais críticos de sua história. A seca que atinge Rondônia tem deixado as mais de 50 comunidades instaladas ao longo do curso d’água em situação de calamidade. Em setembro, a cota do rio caiu para 25 cm, a menor desde 1967, quando começaram as medições. Diante da situação, falta água, alimentos, medicamentos e transporte para os atingidos.
Neste contexto, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem atuado em articulação com instituições de justiça, como a Defensoria Pública, pressionando os órgãos competentes para implementarem ações emergenciais de atendimento à população, e também elaborarem planos de atuação que possam prevenir situações de calamidade, já que as secas severas se tornaram recorrentes na região.
Na última quarta, 04, a Justiça Federal, em resposta à ação coletiva patrocinada pelo Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União (DPU), determinou que os governos (federal, estadual e municipal), distribuam alimentos e água potável para a população do Baixo Madeira, imediatamente. A ação foi protocolada depois de recomendação direcionada aos órgãos públicos que não foi atendida a contento. Para Thiago Mioto, diante da intensificação das mudanças climáticas, é inconcebível que os governos deixem as populações atingidas desassistidas, como aconteceu em Rondônia. Segundo o defensor, a atuação do poder público precisa ser mais preventiva e mais efetiva. Confira entrevista na íntegra:
Quais os principais direitos humanos que são mais frequentemente violados em decorrência das mudanças climáticas?
Direito à saúde, direito à água, direito à alimentação adequada, direito à moradia. São inúmeros os direitos que as mudanças climáticas já estão afetando. As violações tendem a se agravar se o cenário atual não for revertido.
Com a intensificação das mudanças climáticas no país, você acredita que precisaremos rever nossa legislação no que diz respeito às questões relacionadas à reparação de desastres ambientais?
A Constituição da República de 1988 possui uma grande preocupação com o cuidado ao meio ambiente, já trazendo a previsão de que sua proteção visa a sobrevivência não só das gerações atuais, mas também das futuras. A responsabilidade pela proteção ambiental é ampla, não só dos entes públicos como dos particulares. Diante do avanço das alterações climáticas, recentemente, foi promulgada a Lei nº 14.904, de 27 de junho de 2024, que estabelece diretrizes para a elaboração de planos de adaptação à mudança do clima. A legislação ainda não é a ideal, mas já existem previsões e instrumentos importantes para atuação nos casos de grande impacto ambiental.
Mais importante que alteração da legislação, talvez seja a efetiva implementação das medidas já previstas pelos entes públicos, tal como o fortalecimento dos órgãos de controle e da fiscalização ambiental.
Quais grupos sociais são mais afetados pelas mudanças climáticas e por que?
As comunidades tradicionais são as que mais sofrem. Comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, de pescadores, pequenos agricultores, são os que possuem relação mais próxima e de maior dependência com o meio ambiente, o que implica numa maior vulnerabilidade a fenômenos como incêndios e estiagem dos rios.
Essas comunidades são também as que mais protegem o meio ambiente, ao contrário do que ocorre na maioria das grandes propriedades de terra. Por isso, a importância da proteção desses grupos, já que é positivo para o meio ambiente e toda a sociedade a permanência deles em seus territórios.
Quais as principais dificuldades enfrentadas pelas comunidades atingidas pelas mudanças climáticas para acessar a justiça e fazer valer seus direitos?
O acesso à justiça sempre é mais difícil às populações mais vulneráveis, mesmo para se valer de direitos básicos, em qualquer área do direito. Impactos causados por mudanças climáticas são complexos e por vezes causados por grandes empresas e pelo próprio poder público, o que torna essa dificuldade ainda maior. Por isso, a importância da atuação de instituições autônomas como a Defensoria Pública e o Ministério Público, articulada com os movimentos sociais, já que estas instituições são dotadas de prerrogativas e de instrumentos jurídicos importantes para promover esse acesso à justiça.
A Defensoria Pública da União (DPU) tem tido importantes atuações em causas de grande impacto, como no caso do rompimento da barragem da Vale S.A. em Brumadinho (MG) e nos danos causados pela empresa Braskem, em Alagoas. Na tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, a DPU coordenou uma força-tarefa chamada de Caravana de Direitos na Reconstrução do Rio Grande do Sul, projeto muito bem-sucedido.
No caso da seca amazônica, qual a situação das comunidades mais afetadas e como o poder público tem atuado para ampará-las? Quais os limites dessa atuação?
As comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas e de pequenos agricultores foram as mais afetadas. Ocorreram iniciativas do poder público, municipal, estadual e federal, que promoveram algumas ações e assistência às populações atingidas. Em Rondônia, por exemplo, está havendo a entrega de cestas básicas pelo governo federal às comunidades mais afetadas.
No entanto, essa atuação dos entes não se deu na dimensão necessária, considerando a urgência e a gravidade do que essas populações enfrentaram, tendo ocorrido manifesta falta de planejamento. Diversas comunidades ficaram sem qualquer acesso à água potável por um longo período, sem que os entes conseguissem levar água a essas pessoas, situação que não pode ser tolerada em nosso país.
Quais as principais estratégias utilizadas na defesa dos direitos das populações atingidas pelas mudanças climáticas pela defensoria pública?
Nesta semana tivemos uma importante conquista, que foi a decisão da 5ª Vara Federal de Rondônia, que concedeu a tutela de urgência na ação civil pública que teve por objeto a falta de água na Região do Baixo Madeira, em Porto Velho, onde vivem milhares de pessoas. Essa ação é um grande exemplo de como utilizar um instrumento judicial em favor de um grupo vulnerável que vem sofrendo um grande impacto causado pelas alterações climáticas.
O caso ilustra também a importância de uma atuação integrada da sociedade civil, de movimentos como o MAB, e de instituições públicas. No caso, a ação foi ajuizada pela Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal e Ministério Público do Trabalho.
Um ponto importante da decisão foi a determinação de que a União, o Estado de Rondônia e o município de Porto Velho“ apresentem e iniciem a execução de um plano coordenado e integrado para enfrentamento das crises hídricas e humanitárias futuras, contemplando medidas preventivas e de resposta, como construção de poços artesianos, instalação de cisternas, ampliação de sistemas de captação e distribuição de água e implementação de sistemas de filtragem; assim, devem os réus comprovar mediante reuniões entre os órgãos estratégicos dos entes requeridos, para que fixe o prazo de 10 (dez) dias para serem iniciadas, visando a implementação desse plano”. O entendimento do juiz federal demonstra que a atuação preventiva é fundamental para que tragédias causadas pelas alterações climáticas sejam minimizadas e não se repitam.
Como o defensor público trabalha em parceria com outras instituições e movimentos sociais para enfrentar os desafios das mudanças climáticas?
Para a Defensoria Pública da União, a aproximação com as demais instituições, com a sociedade civil e com os movimentos sociais é essencial. A DPU possui, em quase todos os estados do país, um defensor/a que ocupa o cargo de Defensor(a) Regional de Direitos Humanos, denominado de DRDH. Esse defensor possui uma atuação especializada em matérias de direitos humanos e causas coletivas, o que possibilita e tem por finalidade esse contato constante com os movimentos sociais. É justamente do contato com a sociedade civil que o defensor vai conhecer as principais demandas, as violações mais graves. Enfim, a realidade de cada local e de cada comunidade, suas prioridades e em quais áreas a incidência do defensor vai ser mais importante.
Quais os principais desafios enfrentados pelos defensores públicos na defesa dos direitos das populações atingidas pelas mudanças climáticas?
A defensoria pública tem avançado muito nos últimos anos, mas ainda falta uma melhor e maior estrutura. No caso da Defensoria Pública da União, o orçamento é muito baixo, se comparado com as demais instituições. Causas de grande impacto demandam, por exemplo, que a Defensoria tenha uma equipe multiprofissional, como assistentes sociais, engenheiros, peritos, etc., o que ainda quase não existe na defensoria. Além disso, o defensor precisa estar sempre presente nas comunidades, dialogar com a população, conhecer cada território. O que exige equipe de apoio estruturada e maior investimento na DPU.
Como prevenir situações como o desamparo que as populações de Rondônia viveram nessa última seca?
Uma atuação preventiva mais efetiva e mais coordenada entre as três esferas da federação. Além disso, ouvir e permitir a participação da população atingida e dos movimentos sociais na construção dessas políticas e soluções é imprescindível. Muitas vezes, essa população detém muito conhecimento sobre quais são as medidas que necessitam ser adotadas em seu território para evitar essas tragédias.