“Não existe uma crise ecológica e outra social, é uma crise socioambiental”, diz bispo da CNBB

Dom Vicente de Paula, da Comissão para Ecologia, defende ‘conversão ecológica’ e que solução virá das populações

Ato pelos rios, pelas águas e pela vida, São Joaquim de Bicas. Foto: Joka Madruga / MAB

O atual cenário de crescentes tragédias ambientais evidencia a emergência climática global. Muito alertada por pesquisadores e ambientalistas, a crise está diretamente ligada ao modelo produtivo e econômico vigente. Em concordância com esse pressuposto, Dom Vicente de Paula Ferreira, bispo da Diocese de Livramento de Nossa Senhora (BA), enxerga a conversão ecológica como a única saída.

Dom Vicente é membro da congregação redentorista. Foi nomeado pelo Papa Francisco como bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, onde atuou de 2017 a 2023, tendo acompanhado de perto as pessoas e comunidades atingidas pelo rompimento da barragem  Mina do Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG). 

Membro da Comissão de Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o religioso acredita que a crise ecológica está completamente integrada à crise social. 

“A crise atual se dá por um estilo de sociedade. Eu estou cada vez mais convencido de que a emergência tem raízes humanas, que se chamam sistema neoliberalista e capitalista global”, avalia.

Confira a entrevista na íntegra: 

 
Brasil de Fato MG – Primeiramente, gostaria que o senhor se apresentasse e contasse um pouco sobre a sua trajetória.

Dom Vicente de Paula –  Eu sou natural da cidade de Alegre, no Espírito Santo, e minha primeira profissão foi agricultor, na infância e na adolescência. Na juventude, me mudei para Juiz de Fora, município de Minas Gerais. Eu saí de uma comunidade de 500 pessoas para uma cidade de 500 mil habitantes e comecei o meu caminho de formação com os missionários redentoristas.

Fui, por mais de 30 anos, padre da congregação, até ser nomeado bispo. Na congregação redentorista, eu atuei como formador provincial e tive vários trabalhos missionários. Fiz também um doutorado em ciência da religião.

Não vai acontecer nada, se a gente não fizer esses sonhos acontecerem na realidade

Em 2017, eu fui nomeado pelo Papa Francisco como bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte e designado para trabalhar na região do Vale do Paraopeba, cuja maior cidade é Brumadinho. Em 25 de janeiro de 2019, aconteceu o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, o crime da Vale, com a morte de 272 pessoas e a destruição da bacia do Rio Paraopeba. 

Por conta deste percurso, me coloco em uma linha do tempo de muitos trabalhos, sempre ligados às causas missionárias, sensíveis aos mais pobres. Mas eu considero que essa vivência específica em Brumadinho me leva ao que eu chamo de conversão ecológica, me inserindo ainda mais nos dramas socioambientais da nossa humanidade.

Em sua trajetória há um destaque para a atuação em defesa dos direitos humanos. Nem sempre sacerdotes e instituições religiosas têm essa postura para com os mais vulnerabilizados. Como você enxerga que a igreja católica pode agir em prol de mais justiça social?

Eu penso que um dos fatores que pode distanciar um religioso das causas sociais é a confusão da espiritualidade como algo ligado só ao culto na igreja. Esses dramas sociais e ecológicos exigem exposição, correr o risco, e é muito exaustiva essa imersão nas periferias.  Isso pode ser um empecilho para aqueles que talvez não queiram ter um compromisso com a causa. 

Mas isso não se justifica no evangelho. Aliás, o evangelho é claro em dizer que a verdadeira religião, para Jesus, é  “amar o próximo”. O nosso juízo final se dá com a presença dos pobres: “Estive nu, estive com fome, estive com sede, e vocês estavam lá me ajudando”. Essa é a espiritualidade encarnada.

Com o capitalismo e a busca por conforto de uma religião do alívio, algumas pessoas podem optar pelo imaginário desencarnado da religião, mas isso não é o cristianismo. O cristianismo exige da gente presença, “ser sal e luz no mundo”, uma presença encarnada de corpo e alma nas realidades concretas, até porque, a categoria mais importante que Jesus nos deixa é o Reino de Deus, que é também a justiça e a paz inauguradas no agora, com a presença do bem aqui nesta Terra, nesta história. 

Nós não defendemos o “capitalismo verde”, que é o símbolo da contradição. Defendemos uma mudança sistêmica

Só há um caminho para superar isso, que é indo para as realidades. Fico um pouco triste quando escuto alguém dizendo “esse é o seu jeito, é uma opção sua”. Eu entendo que é a opção que se propõe no evangelho de Jesus: uma  igreja que defende a justiça social e  o cuidado com a criação. Quem não percebeu isso ainda precisa mudar o seu conceito de cristianismo.

A estrutura da igreja católica também precisa de muita conversão, porque às vezes os nossos arranjos institucionais se distanciam muito das realidades concretas do nosso povo mais simples. E nós temos que estar o tempo todo tentando mudar isso, para que sejamos de fato uma igreja dos mais vulnerabilizados.

Como o senhor analisa o atual contexto de emergência climática? Qual pode ser o papel da igreja e de seus sacerdotes diante desse cenário?

A igreja e as propostas do magistério do Papa Francisco sempre se atentam ao que nós chamamos de sinais dos tempos, que são os gritos da realidade presente. O que a realidade clama e aponta hoje, sem dúvidas, é a questão da emergência climática.

O papa coloca no Laudato Si o que está acontecendo com a nossa Casa Comum. A ecologia integral é um tema prioritário. A questão do clima, do aquecimento global e dos eventos extremos é uma temática transversal e a mais importante. 

A crise atual se dá por um estilo de sociedade. Eu estou cada vez mais convencido de que a emergência tem raízes humanas, que se chamam sistema neoliberalista e capitalista global.

É preciso ter muita utopia, arte e poesia, e, ao mesmo tempo, pisar os espinhos do chão dos pobres
 

Nós pautamos a vida a partir do extrativismo para o acúmulo, para o enriquecimento de uma minoria da população global, o 1% de gente que domina a maioria das riquezas. Aí está a raiz mais pecaminosa e desastrosa de tudo que está acontecendo. Eu creio que nós temos que apontar que há um grupo privilegiado que é mais culpado.

O papel mais difícil da igreja é denunciar as empresas, esse 1% e a sua presença nos territórios. Acho que o profetismo da igreja vem primeiramente da denúncia dessa grande estrutura econômica, dos mega empreendimentos internacionais, que são neocolonialistas e muito violentos com os nossos territórios.

Outro ponto é ajudar nas iniciativas concretas. Por exemplo, na educação da consciência das novas gerações para uma espiritualidade ecológica. A igreja pode ajudar muito nesse aspecto, porque somos uma rede muito forte de comunidades e estamos presentes em cinco continentes.

Dizer que o agro é a grande fonte de riqueza do país é desconhecer que esse setor é também o que mais consome investimentos

Se os cristãos começassem vivendo aquilo que se propõe como uma sobriedade feliz, já faríamos um grande efeito na crise ecológica, eu não tenho dúvida disso.

E o terceiro ponto, que eu compreendo como o mais complexo, é estar nos territórios. Não adianta discursar a partir dos escritórios. É importante uma fala na ONU [Organização das Nações Unidas], por exemplo, porque nos dá visibilidade, mas, se o meu corpo e a minha história não estão sendo construídos nos territórios atingidos, eu perco a compreensão dos sofrimentos que esses empreendimentos estão causando. 

Temos que parar com essa visão protecionista do atingido, do indígena e do quilombola. Eles não são pobrezinhos que não têm nada a oferecer, eles são quem têm a solução para nos ensinar. Se ainda há rio e floresta, é por conta da existência dessas comunidades. Nós precisamos fazer um deslocamento geográfico.

O que é “sobriedade feliz”?

É um termo que vem como pista de ação para essa conversão ecológica, para a ecologia integral. Vem do Laudato Si’, quando diz da necessidade de mudança de estilo de vida. Nós temos um estilo de vida muito consumista, pautado no dinheiro. Temos um ideal de vida muito baseado na ideia de que é o “ter” que nos “faz”. Ou seja, “quanto mais eu tenho, mais eu sou”.

Lutar por aquilo que é digno, pela casa, pelo carro,  pelo trabalho,  pelo sustento e por uma vida confortável é a sobriedade feliz. O que destrói não é o que eu tenho para a minha subsistência, é a minha ganância.

O que a gente vai levar adiante, quando acumulamos tantas coisas? É aquela questão do senhor lá do evangelho, quando Jesus fala “o que eu vou fazer na minha colheita? Colhi muita coisa, vou aumentar os meus celeiros, vou encher tudo e agora eu posso dizer, ‘estou feliz. Estou em paz. Posso viver’. Então, Deus disse, ‘mal sabe ele que hoje mesmo a vida dele será recolhida’”.

A sobriedade feliz nos coloca no coração daquilo que é o mistério da vida: a gratuidade e a beleza. Você não carrega muita coisa na vida, mas carrega o essencial, que é a felicidade.

Os eventos climáticos extremos, embora atinjam a todos, têm impactos maiores para as vidas de populações vulnerabilizadas. O próprio Papa Francisco afirmou que “os que mais sofrem com as consequências desses desastres são os pobres”. Qual é a relação entre a crise climática e a nossa enorme lacuna de justiça social?

Não existe uma crise ecológica e outra social, é uma só crise socioambiental. Isso é o número 139 do Laudato Si’. Significa que, como tudo está interligado, se há uma ferida na ecologia, isso impacta em nós seres humanos. Se há uma injustiça social, isso tem impacto na ecologia. 

Creio que todos nós sofreremos, porque entramos numa fase tão agressiva em relação ao meio ambiente que passamos a viver uma insurreição da Terra. Ela está devolvendo sobre nós tudo aquilo de agressão que nós fizemos a ela. Não no sentido de punição, mas de resposta. É  uma questão bíblica, um mandamento da natureza.

Quem paga o preço primeiro são os refugiados, os que não têm recursos. Mas o preço virá, com o tempo, para todos. Interferimos naquilo que é mais espiritual, o ar, o clima, aquilo que nos reveste enquanto planeta de vida para os humanos. Não temos planeta B.

O senhor  tem esperança de reversão desse processo de mudança climática?


Se eu perder a esperança, vou dar razão a esse 1%, que está acabando com a gente. Eu não vou dar esse gosto para quem quer acabar com o planeta e com os pobres. A minha esperança é de “esperançar”, no sentido que nos ensinou Paulo Freire. 

Outro dia, desenhei a minha esperança, como uma ave que tem asas que sonham e pés que andam. É preciso ter muita utopia, arte e poesia, e, ao mesmo tempo, pisar os espinhos do chão dos pobres. É essa a esperança que eu tenho. Agora, aquela esperança de pura espera, pura expectativa de que alguma coisa vai acontecer, não, isso já é a morte. Não vai acontecer nada, se a gente não fizer esses sonhos acontecerem na realidade.

Creio também na força do espírito, em nós, porque somos cristãos e estamos ligados a esse mistério mais profundo. Aquela sabedoria que não se traduz nem na melhor obra de arte, é dessa força que eu falo, de uma porção de vida que não pertence só a nós humanos, pertence ao organismo universal de vida e isso foge do nosso controle.

Eu só não espero a esperança dos mais ricos, de que daqui para frente vamos conseguir manter essa ordem vigente de estrutura extremamente injusta.

A mineração é uma engenharia criminosa e o Brasil tem uma arquitetura da impunidade.


Como tem sido a atuação da Comissão de Ecologia Integral e Mineração da CNBB? 

Trabalhamos com um grupo de cinco bispos, fazemos reuniões mensais, e temos uma cartilha de narrativas, que é a nossa linguagem.

Nós não defendemos o “capitalismo verde”, que é o símbolo da contradição. Defendemos uma mudança sistêmica, que parte do encurtamento da distância da injustiça social, os pobres, a biodiversidade, os povos originários e os quilombos.

As alternativas existem, os governos é que não querem investir nelas. Vemos aí, por exemplo, o absurdo e a deslealdade que é a diferença do investimento no agronegócio e aquilo que se investe nos pequenos agricultores e na agricultura familiar.

Temos os maiores crimes socioambientais e ninguém é julgado, ninguém é preso
 

Dizer que o agro é a grande fonte de riqueza do país é desconhecer que esse setor é também o que mais consome investimentos. Defendemos mais investimento no sustentável, naquilo que é local, nas alternativas que defendem a água, os rios e as florestas.

Um dos eixos de atuação é esse: acordar as nossas lideranças, bispos e padres para não subestimar esses problemas. Nos acostumamos a ter empresas do agro, da mineração ou da exploração e convivemos com isso de “forma passiva”. Muitas vezes, o que é pior, chegamos a ser “coniventes”, porque essas atividades financiam as igrejas. 

Quer dizer, a mineração mata e destrói, mas vai reformar os nossos cemitérios. Isso é um absurdo. Ter lucidez diante desses impactos é também missão nossa.

Como o senhor enxerga a questão da mineração em Belo Horizonte e no Brasil? Qual é a relação do atual modelo de mineração com o agravamento da crise climática?

A mineração, sem dúvida, é um dos empreendimentos que mais capitania desastres e impactos ambientais. A gente tem visto isso com muita presença em Minas Gerais, mas também na Amazônia e na Bahia. Os impactos são muito grandes, porque a mineração parte de um extrativismo predatório. 

Não existe mineração sustentável. Todo território minerado sofre com o impacto da morte, porque as comunidades ficam sem nada e  a natureza fica destruída.

A mineração é um campo de guerra. Onde há empreendimentos de mineração, tem disputa, injustiça social, pobreza e impacto ambiental. Isso é um dado da realidade.

A mineração é uma engenharia criminosa e o Brasil tem uma arquitetura da impunidade, porque temos os maiores crimes socioambientais e ninguém é julgado, ninguém é preso. Só se pensa em dinheiro, em acordo e não em justiça de fato. É uma injustiça que se faz com os atingidos. Quem repara a alma ferida, a doença psíquica, a perda da alegria da vida no ambiente vital de afeto?

Defendemos mais investimento no sustentável, naquilo que é local, nas alternativas que defendem a água, os rios e as florestas
 

Só se pensa em dinheiro, mas isso não repara o outro lado da moeda, que é o bem-estar das pessoas. Como é que você vai reparar o lugar de culto dos indígenas que era na beira do rio? Como reparar uma igreja soterrada? Ali tinha uma comunidade que vivia os seus ritos e suas festas. Quem pensa nisso? 

A mineração desmonta o equilíbrio ambiental, inclusive o espaço geográfico. Historicamente, o Brasil é um terreno de pilhagem das nossas mercadorias naturais. Só vão nos esquecer no dia que acabarem com os nossos recursos.

Estive em Belo Horizonte durante mais de seis anos e é muito ruim perceber o esquecimento. A coisa que mais dói em relação ao estado de Minas Gerais é como Mariana e Brumadinho foram, em um ponto de vista, soterrados na memória. Os crimes caíram no esquecimento coletivo. 

É claro que alguns grupos são resistentes, lutam pela memória e querem Justiça. Mas, como o dinheiro falou mais alto, o rompimento de barragens é lucrativo para as mineradoras.

Tem crescido o número de grupos negacionistas que se aproveitam das crenças para atrair seguidores. Como as igrejas de diferentes denominações podem agir para combater esse problema? 

É um paradoxo. Enquanto o Papa Francisco orienta a igreja no sentido de que nossa maior proposta é enfrentar a crise climática, essa é a questão que o negacionismo mais despreza. 

Enquanto o Papa, aquele que nos orienta dentro da igreja, fala desse assunto mais do que qualquer outro, dizendo que esse é o principal ponto de atenção, tem um grupo crescente que faz questão de nem tocar nesse assunto. Isso é terrível. É um problema sério.

Em minha leitura, como o capitalismo precisa continuar impondo o seu discurso de que nós somos felizes pela quantidade que temos, nada melhor para ajudar a validar isso do que uma linguagem religiosa. É claro que, para um sistema que está matando, é ótimo ter uma religião que vai estar do lado dele. Para mim, isso é um projeto.

Não existe mineração sustentável. Todo território minerado sofre com o impacto da morte, porque as comunidades ficam sem nada e a natureza fica destruída.
 

Esse projeto monetiza esses grandes influenciadores negacionistas para poder controlar a massa. Qualquer grupo que esteja lutando contra isso vai ser cancelado de todos os lados. Mas eu, que vim da roça, sei muito bem que a boiada também estoura e acho que o grande estouro está vindo pela própria natureza. 

Nesse sentido, se a igreja é mesmo cristã, ela vai estar do lado de baixo da história, o lado dos feridos. Essa é a história da salvação. Desde o antigo testamento, Deus toma o lugar dos pequenos e feridos. Cristo nos revela que de fato é cristão quem põe Jesus no centro e vai para as periferias. 

Se não for assim, essa igreja é de mercado. Pode usar a batina que quiser, mas não é cristão. Eu vejo que muitas espiritualidades não cristãs já contemplam isso, como os indígenas e afrodescendentes, que são excluídos e banidos, porque eles já têm essa perspectiva da sustentabilidade e da comunhão cósmica.

Por fim, o que você diria aos cristãos sobre o dever para com a proteção do meio ambiente?

Antes de, preconceituosamente, alguém dizer que a defesa do meio ambiente é uma pauta política ou partidária, de ambientalistas, nós estamos afirmando que é uma pauta de fé. Quando eu digo “creio em Deus Pai, criador de todas as coisas”, o meio ambiente é obra do criador e é sagrado. Se eu o destruo, estou pecando.

O cristão católico tem que partir desse pressuposto, da necessidade de uma conversão ecológica, porque existe um grande pecado ecológico. É uma questão de fé, palavra de Deus, não é só uma invenção de quem agora começou a descobrir essa temática ambientalista.

Fonte: BdF Minas Gerais




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