Eólicas e mineração: famílias removidas para construção da barragem de Sobradinho enfrentam novas ameaças

Cinco décadas depois de 72 mil pessoas serem retiradas de suas casas nas bordas do São Francisco, comunidades tradicionais da região voltam a ter suas terras na mira de grandes empreendimentos

Foto: Nathallia Fonseca / Projeto Colabora

Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado, no Sertão da Bahia, cederam o chão sob os pés de 72 mil pessoas para que a usina hidrelétrica de Sobradinho fosse construída com a promessa de ser a grande renovação energética na ditadura militar. Entre 1971 e 1980, famílias que tradicionalmente viviam da caatinga foram atingidas pela remoção forçada e deixadas quase sem recursos. São essas mesmas pessoas que lidam novamente com a chegada de grandes empreendimentos apoiados pelo Estado: desta vez, parques eólicos e mineradoras se impõem sobre o modo de vida das comunidades.

A reportagem visitou os quatro municípios, numa região cuja riqueza natural, muitas vezes disfarçada pela aridez do clima, segue atraindo olhares de grandes empresas. Empreendimentos que assumem o risco de agravar a dívida social com povos que há centenas de anos ocupam o território. O resultado é a série de reportagens Sobradinho: uma saga sertaneja em dois tempos, que traz histórias das famílias que convivem, cada uma ao seu modo, com lembranças do passado e a chegada de um futuro controverso.

“Adeus, Remanso, Casa Nova, Sento, Sé / Adeus, Pilão Arcado, vem o rio te engolir” – os versos e acordes de Sobradinho, canção do carioca Luiz Carlos Sá e do baiano Gutemberg Guarabyra, tornaram o drama e a luta dos moradores da região a ser alagada pelo lago da nova hidrelétrica conhecidos em todo o Brasil. “Debaixo d’água, lá se vai a vida inteira” resumia o sentimento das milhares de famílias que tiveram que deixar suas casas e recomeçar em outro lugar – a maioria preferiu ficar ali por perto, nos municípios redesenhados pela obra.

O lago da hidrelétrica de Sobradinho, construída na década de 1970: 72 mil pessoas removidas das cidades de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado, no Sertão da Bahia. Foto: Nathallia Fonseca / Projeto Colabora

Tira gente, põe represa

Meu pai falava que tinha muito medo de chegar uma outra empresa que mudasse a gente de lugar de novo. Eu também sempre tive. Não sei como tem gente que aceita vender o próprio sossego. Eu não vendo, relata Vaneide Braga, agricultora e líder comunitária em Casa Nova.

No trecho, que pertence ao documentário Terra Roubada (Peter Von Gunten), Aguiar explica que o plano do qual participou contava com a saída voluntária de pelo menos 5 mil famílias do lugar onde viviam, na borda do Rio São Francisco, para agrovilas construídas a 700 quilômetros dali. O resultado foi uma resistência de camponeses e povos indígenas fixados há muitas gerações no território que, ainda assim, não conseguiu impedir a chegada da maior área inundada do Brasil até hoje: 4.214 quilômetros quadrados, com 320 quilômetros de extensão. O lago artificial de Sobradinho também é o 11º maior do mundo.

“Vai ter barragem no Salto do Sobradinho”, anunciava o sucesso de Sá & Guarabyra – o salto do Sobradinho era um trecho de corredeiras no Rio São Francisco onde foi construída a barragem. “E o povo vai embora com medo de se afogar”, prosseguia a letra. Este verso usa uma licença poética: a população foi embora forçada pelo governo e pela Chesf. Estima-se que 72 mil pessoas foram deslocadas compulsoriamente entre 1972 e 1978. Entre os relatos dos moradores atingidos pela barragem, estão a falta de recursos, indenizações que nunca chegaram e uma alteração profunda nas relações de pertencimento da população com o lugar. A luta por direitos nunca cessou. Em março de 2023, o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) determinou que a Chesf deveria indenizar 164 ribeirinhos atingidos pela obra, por danos morais.

“A remoção que a Chesf realizou em função da barragem de Sobradinho trouxe impactos sociais, econômicos e culturais profundos e multifacetados na vida das populações atingidas”, comenta Marcos Souza, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que acompanha as comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco. Ao citar os principais danos, ele destaca a fragmentação de comunidades que prejudica, até hoje, a rede de apoio dessas famílias.

“Há ainda o estresse, ansiedade, depressão que foram gerados entre os atingidos. Quando se pensa na incerteza quanto ao futuro e nas dificuldades de adaptação aos novos locais, isso é um aspecto que causa enormes problemas de saúde mental. Infelizmente o tempo não cura esse tipo de processo”, diz.

“É importante também que a gente entenda que as áreas inundadas não carregam somente valor econômico, elas carregam um valor cultural e espiritual. A retirada desses povos de suas terras ancestrais interrompeu tradições centenárias, modos de vida que eram passados de geração em geração”, pontua o representante do MAB, que também aponta uma evidente contradição: “muitas famílias que foram deslocadas para a construção desse empreendimento que gera energia para todo o Brasil, seguem até hoje sem acesso a energia elétrica e água potável em quantidade adequada”.

Em nota, a Centrais Elétricas Brasileiras S.A  – Eletrobras, que controla a Chesf, disse que “as obras que resultaram no lago de Sobradinho (BA) e na hidrelétrica de mesmo nome iniciaram-se na década de 1970, em um cenário de necessidade de consumo de energia para possibilitar o desenvolvimento da região Nordeste. Para a implantação do empreendimento requisitos e condicionantes ambientais e sociais foram estabelecidos e atendidos” e que “os empreendimentos hidrelétricos possibilitam a segurança para o atendimento de energia do país, inclusive do sertão nordestino, gerando energia limpa e somando investimentos para a região com garantia de emprego e renda”. 

A empresa também reforçou que “com o recente acordo nas Ações Civis Públicas que discutiam impactos das barragens no baixo São Francisco, homologado pela Justiça Federal de Sergipe, não existem mais ações em curso sobre o tema”. Questionada se avalia, hoje, alguma falha social ou técnica no plano de implementação da barragem, a empresa não respondeu. 

Parque eólico em Casa Nova, cidade reconstruída após ser submersa para construção da hidrelétrica de Sobradinho: moradores resistem a novos empreendimentos. Foto: Chesf / Divulgação

“O melhor vento do mundo está no interior da Bahia”

Na BR 235, que acompanha uma das margens do lago e é conhecida como “Estrada do Vaqueiro”, é impossível não reparar nos enormes cataventos que, às dezenas, desenham o horizonte no alto de muitas das serras. São os parques eólicos Pedra do Reino, em Sobradinho, e Casa Nova I e II, na cidade de mesmo nome. A região é responsável pela maior produção de energia eólica do Brasil. A presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Élbia Melo, afirmou em entrevista ao Estadão que “estudos mostram que o melhor vento do mundo está no interior da Bahia”.

Por ali, também passam com frequência caminhões carregados de minérios, assim como as enormes pás de aerogeradores  – que completam uma estética futurista quando transportadas uma a uma por carretas a caminho de algum dos 63 parques eólicos que o estado pretende construir até 2025. O mais recentemente inaugurado, em maio deste ano, é o complexo de Aroeira, um investimento de 3,9 bilhões da Enel Green Power Brasil que se estende por três municípios.

Nosso medo também são os problemas secundários que vêm quando um lugar é fruto da cobiça dessa maneira. Nós já sofremos com conflitos, já sofremos com a grilagem cada vez mais frequente, afirma João Luiz Amorim, líder comunitário em Remanso.

É assim o trajeto de cerca de quatro horas que liga a comunidade tradicional de Garapa, um fundo de pasto onde vive Vaneide Braga, e a casa de Antônio Carvalho, em São Gonçalo da Serra, distrito de Sobradinho. Vaneide e Antônio não se conhecem, mas têm histórias muito parecidas: viveram, até a década de 1970, em territórios submersos pelo lago da usina Sobradinho e, hoje, moram em comunidades mais uma vez tensionadas pela presença de parques eólicos.

Ao relembrar o deslocamento para que a barragem chegasse, em 1976, Vaneide recorda: “eu era uma criança quando a obra começou. Minha família, que era de Riacho Grande, foi para Umburana. Foi lá que cresci”. Ela conta que, com a chegada dos novos moradores, a região não demorou a se tornar uma zona de conflito. “Diziam que um fazendeiro era dono das nossas terras, mas não era”, diz. A agricultora conta que aprendeu cedo a se articular politicamente pelo direito de morar. “Éramos eu, meus pais e oito irmãos. Aos fins de semana, íamos aos encontros da Pastoral da Terra”.

A mudança para o povoado de Garapa ocorreu após o casamento com Gilmar Bezerra. Anos depois, a área seria mapeada para a construção de um novo parque eólico da gigante energética Casa dos Ventos, atualmente em fase de medição e desenvolvimento. “Meu pai falava que tinha muito medo de chegar uma outra empresa que mudasse a gente de lugar de novo. Eu também sempre tive. Não sei como tem gente que aceita vender o próprio sossego. Eu não vendo”, diz. O casal é a única das 19 famílias que resiste, há dois anos, ao arrendamento do terreno para instalação de turbinas numa postura que desafia empresas à transição energética justa.

Já Antônio, indígena da etnia Tamoquim, viveu o movimento típico dos beiradeiros, que acompanham de perto o fluir do próprio rio: “Durante o inverno a gente [Antônio e a família] estava em São Gonçalo da Serra e durante o verão estava na beira Velho Chico. Era um jogo, vindo e voltando”, conta. A dinâmica que garantia alimento o ano inteiro, conhecida como agricultura de vazante, foi interrompida pela chegada da barragem. 

Por não possuir propriedades na beira do rio, onde a área era coletivamente ocupada, a família de Antônio não recebeu indenização. “Nossa casa era de barro, como se fosse uma cabana. A gente não era dono de terra nem terreno”, explica. A mãe, os irmãos e um Antônio ainda na infância aparecem em algumas das cenas do documentário suíço Terra Prometida, produzido em 1979 sobre o despejo de camponeses pela Chesf. Desde então a família vive apenas em São Gonçalo da Serra, onde outro parque eólico tenta, há mais de uma década, se firmar. 

“A gente entrou na justiça porque essas terras são Fundo de Pasto, mas as torres de testes já estavam lá quando o processo começou”, conta. A judicialização do conflito contra a eólica, alegando grilagem de terras, aconteceu em 2010. As turbinas da Energisa, holding de energia elétrica, seguem monitorando os ventos.

A pesquisadora Mariana Traldi, geógrafa, professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e autora da tese ‘Acumulação por despossessão’ sobre a privatização dos ventos para a produção de energia eólica na Bahia, comenta a dupla exploração dos territórios. “Eu entendo que essas populações já foram despossuídas da terra como território uma vez – do lugar de sua identidade, cultura e existência – e agora sofrem novamente com uma nova forma de despossessão por conta de interesses que surgem, novamente, em nome da energia elétrica”, diz.Para Mariana Traldi, o preço da transição energética está sendo cobrado de quem não tem responsabilidade alguma sobre a crise climática. “As pessoas ali serão despossuídas enquanto houver algo de interesse do grande capital; e, nesse caso, é a produção de energia sob o pretexto da energia limpa, sob o pretexto de que essas populações vão pagar um preço em benefício dos setores mais amplos da sociedade. Então o discurso é de que é preciso produzir energia renovável em benefício do enfrentamento das mudanças climáticas. E alguém vai pagar o preço. E curiosamente quem vai pagar o preço são essas comunidades, aquelas que em nada ou em quase nada contribuíram para as mudanças climáticas. É uma zona de sacrifício”, acrescenta a pesquisadora.

Em nota, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Bahia destaca que os municípios com empreendimentos de energia eólica em construção aumentam a arrecadação de ISS durante o processo de implantação das usinas. “Os avanços socioeconômicos se dão também com o incremento direto da renda da população local. Isso ocorre, pois, os pequenos proprietários de terra do semiárido baiano recebem por parte das empresas proprietárias desses parques um valor que varia em média de R$ 4 mil a R$ 6 mil reais por cada torre eólica instalada em sua área arrendada”, afirma a nota, acrescentando que “em termos de supressão vegetal, pode-se dizer que os empreendimentos eólicos geram um impacto mínimo se comparado a outros empreendimentos de geração de energia elétrica”. A secretaria diz ainda que o “Governo do Estado da Bahia se preocupa em garantir uma transição energética sustentável e socialmente justa, por conta disso a participação da SEMA no processo de habilitação de um empreendimento é de vital importância”.

Mineração na Serra da Bicuda, em Sento Sé, próximo ao Rio São Francisco: impactos socioambientais nas 12 comunidades tradicionais atingidas. Foto: Thomas Bauer

“Bahia é destaque internacional na mineração”

Sento Sé foi mais uma das quatro cidades submersas pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). A 30 quilômetros da sede reconstruída, estão as comunidades de Aldeia, Pascoal e Limoeiro (APL), para onde foram muitos dos agricultores que se recusaram a viver em agrovilas após a chegada da Companhia. A área, nas proximidades da Serra da Bicuda, é apontada pelo Mapa de Conflitos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) como parte das 12 comunidades tradicionais atingidas hoje pelos efeitos da mineração em Sento Sé. 

O agricultor Carlos Branco, que atualmente vive em Pascoal, traz lembranças da chegada da barragem de Sobradinho. “Até hoje eu fico triste com tudo o que aconteceu. Muita gente caiu em desgosto, muita gente foi pra longe e não vimos nunca mais”, diz. Apesar do assunto sensível, ele se diverte com a lembrança de um vídeo que a CHESF exibiu, à época, para convencer os moradores a partir para vilas mais distantes. “Eles nos reuniram numa praça e mostraram as imagens de uma espiga de milho gigante, do tamanho de um jaca. Umas plantações enormes… hoje a gente sabe o que é montagem. Era absurdo demais”, conta.

Desde 2020, Carlos acompanha o intenso movimento de veículos e trabalhadores da transnacional Tombador Iron, sediada na Austrália, que explora o minério de ferro na Bahia. Apesar de apontar diferenças que ele considera positivas no fluxo de pessoas e economia da cidade, o agricultor reconhece uma desconfiança sobre os impactos ambientais. 

Ainda segundo o mapa dos conflitos, a Iron Mineração teve as pesquisas minerárias na região reprovadas três vezes pela Agência Nacional de Mineração (ANM): em 2011, 2014 e 2018. As atividades começaram apenas durante a pandemia de Covid-19, sem consulta prévia com os moradores. 

Em janeiro de 2023, comunidades atingidas bloquearam a rodovia BA-210, que dá passagem aos caminhões da empresa, para protestar contra os prejuízos socioambientais causados pela mineração e ausência no cumprimento de acordos, como o de que trechos seriam asfaltados. A reintegração de posse ocorreu após 12 dias. Segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os municípios do Sertão da Bahia chegam a ter 90% da sua área total mapeada para exploração mineral. 

Pilão Arcado e Remanso, outros dois municípios reconstruídos após a barragem de Sobradinho, convivem com cenário parecido e não menos preocupante. Por lá, pesquisas minerárias são cada vez mais frequentes e menos amigáveis à população. De acordo com dados da ANM (Agência Nacional de Mineração), a Bahia foi o estado que mais investiu em pesquisa mineral nos anos de 2019 a 2021.

No ano passado, a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM) confirmou a descoberta de uma província mineral que pode chegar a 100 quilômetros, englobando os dois municípios além de Campo Alegre de Lourdes. A Companhia investe agora no que chamou de “programa extensivo de sondagem”.

E conviver com essa sondagem já traz, em si, problemas e tensões. “Nosso medo também são os problemas secundários que vêm quando um lugar é fruto da cobiça dessa maneira. Nós já sofremos com conflitos, já sofremos com a grilagem cada vez mais frequente”, relata João Luiz Amorim, líder comunitário e morador da comunidade tradicional de Salinas Grande, a 30 quilômetros da sede de Remanso.

Sobre os empreendimentos de mineração, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Bahia argumenta, na nota, que “em todos os municípios onde a mineração começa a atuar de forma efetiva, há uma melhora no seu IDH”, acrescentando que a mineração cria empregos diretos e indiretos, proporcionando oportunidades de trabalho para a população local”. O órgão estadual admite, entretanto, que a mineração traz benefícios econômicos, mas também desafia o equilíbrio entre o desenvolvimento e a preservação ambiental e social. “As atividades de mineração alteram a dinâmica dos espaços e o modo de vida das comunidades localizadas na área de influência, ocasionando principalmente impactos culturais e na saúde, conflitos sociais e degradação ambiental”, afirma a Secretaria. A nota afirma ser “essencial adotar medidas eficazes de mitigação e sustentabilidade para minimizar os impactos negativos e promover o desenvolvimento sustentável em longo prazo” e cita iniciativas como “ações de engajamento com as comunidades locais para garantir a participação e transparência nas operações das mineradoras” e programas de capacitação e treinamento para a população local.




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