Priscila Neves: “A ciência pode ser mais humanizada e efetiva a partir dos encontros entre os saberes acadêmicos e populares”
Entrevista: Pesquisadora da Fiocruz, Priscila Neves foi uma das coordenadoras do recente estudo sobre saúde dos atingidos por barragens. Além de comentar a pesquisa, nesta entrevista, fala sobre ciência à serviço da vida, maternidade na academia e popularização do conhecimento
Publicado 27/04/2023 - Atualizado 05/08/2024
Priscila Neves é mineira, pesquisadora da Fiocruz – RJ, doutora em saúde coletiva e pós-doutoranda no Instituto Rene Rachou, da Fiocruz – MG, no grupo de pesquisa de Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento.
Resolveu se tornar cientista na área de saúde para atuar pela melhoria da qualidade de vida nas comunidades e populações mais vulnerabilizadas do país. “Desde muito jovem, eu tinha o desejo de que minha produção profissional, minha produção de vida pudesse contribuir com uma certa equidade, contribuir com a justiça social no Brasil”.
Nessa sensível trajetória científica marcada por uma perspectiva da saúde integrada dos seres humanos, ela tem atuado na avaliação e monitoramento de políticas públicas e na realização de pesquisas sobre acesso a serviços de saúde e de água, saneamento e higiene no interior do país. Foi assim que ela conheceu o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), com quem está trabalhando como uma das coordenadoras do estudo intitulado “Saúde, água, energia, ambiente e trabalho: tecendo saberes na promoção de territórios sustentáveis e saudáveis”.
A pesquisa focada nos impactos das barragens na saúde das populações atingidas foi dividida em duas partes. Na primeira delas, um grupo de pesquisadores da Fiocruz e do MAB se debruçou sobre mais de 500 documentos entre relatórios, artigos e teses sobre os impactos das barragens brasileiras. Na segunda fase, esses pesquisadores se reuniram com atingidos de todas as regiões do Brasil em uma oficina de trabalho realizada na Escola Politécnica Joaquim Venâncio – Fiocruz, no Rio de Janeiro, durante os dias 26 e 27 de abril. Nesse encontro, os atingidos puderam relatar em grupos focais os principais danos causados pelas barragens em seus territórios e suas vidas- incluindo as drásticas mudanças nas paisagens, os efeitos dos deslocamentos forçados e o quadro de enfermidades que passaram a acometer suas famílias.
Além de ser uma pesquisadora com um pé na academia e outro na comunidade, Priscila é uma mãe-cientista. Ou uma cientista-mãe (da Clarice, 10, e do Benjamin, 2). Quando mandou sua biografia para essa entrevista, pediu que a informação sobre os seus filhos fosse mantida na sua apresentação, para que outras mulheres entendam que é possível se dedicar ao mesmo tempo à carreira acadêmica, ao debate político e à maternidade e se sintam encorajadas.
“É um grande desafio conciliar a produção científica com a maternidade, porque a maternidade tem uma demanda 24 horas por dia. Por isso, a mãe está sempre exausta. Então, a gente precisa de compreensão e rede de apoio. Por outro lado, os meus filhos também me motivam. É também por eles que eu busco uma sociedade mais justa, mais igualitária, um futuro com mais igualdade”, afirma.
1 – O que simboliza para você esse encontro de trabalho entre Fiocruz e MAB?
Eu fico, particularmente, muito emocionada, vendo os atingidos ocupando esse espaço público da Fiocruz, porque acho que essa construção do conhecimento tem que ser com, tem que ser junto com as pessoas dos territórios.
É essencial que os atingidos, eles participem, que eles contribuam com a pesquisa, construindo ciência, construindo conhecimento. É só assim que vamos elaborar políticas efetivas.
2 – Como a ciência pode ser mais humanizada?
A partir de trocas como essas. Enquanto cientista, a gente não dá conta de conhecer todas as realidades que existem nos territórios. A gente consegue ver de um único prisma, muitas vezes. Então, são as pessoas que vivem nos territórios, os pesquisadores populares, os movimentos sociais que vão trazer – com mais precisão – os problemas que existem nas comunidades. A gente vai conseguir capturar, compreender os problemas, os danos que as barragens causam no território ouvindo as pessoas de lá. Então essa troca é essencial pra gente construir conhecimento de forma eficiente.
3 – Como esse intercâmbio de conhecimentos acontece na prática?
O nosso estudo foi construído a partir de uma verdadeira troca. Os pesquisadores do MAB estiveram envolvidos em todas as fases, desde o estabelecimento dos referenciais teóricos, a busca e análise dos documentos, a escrita dos textos. Tudo foi feito em parceria. Isso é enriquecedor. Os pesquisadores da Fiocruz aprenderam muito com os pesquisadores do MAB que estavam dividindo com a gente uma realidade que a gente desconhecia. A partir dessa experiência, gente precisa aprneder a dialogar mais, mudar nossa forma de falar, nosso vocabulário pra popularizar o conhecimento.
4 – Qual a motivação para a criação desse estudo?
A construção da barragem de Belo Monte e o rompimento das barragens da Samarco em Mariana e da Vale S/A em Brumadinho chamaram a atenção para a necessidade de se conhecer com maior profundidade os impactos que as barragens produzem na saúde dos atingidos e atingidas. Dessa forma, esse estudo visa conhecer os principais impactos, tendo como base a determinação social da saúde, de modo a subsidiar a construção de diretrizes para uma política pública de saúde voltada para essa população.
5 – Quais são as constatações mais relevantes do estudo?
O estudo mostra que os impactos de uma barragem sobre a saúde da população afetam vários aspectos da vida e se iniciam muito antes da construção. Mesmo o anúncio já gera adoecimento. Nesse sentido, é essencial que o projeto de construção de uma barragem estimule a participação efetiva da população, sem discriminação, desde seu planejamento, garantindo acesso à informação de forma transparente: um espaço de diálogo, democrático, onde todos e todas possam ter voz deve ser incentivado.
É essencial estimular a participação das mulheres que, segundo vários estudos, são as mais atingidas pela construção das barragens. Além disso, é imprescindível que o processo de responsabilização (accountability) seja assegurado de forma que a população saiba onde, como e de quem deve ser cobrada a execução das ações.
7 – Sobre o tema da saúde mental, você acha que esse aspecto tem sido considerado devidamente nos estudos de impacto socioambiental dos grandes empreendimentos?
Os danos relativos à saúde mental dos atingidos e atingidas por barragens e por outros grandes empreendimentos ganhou visibilidade nos últimos anos, em especial após o rompimento das barragens da Samarco (Vale/BHP), em Mariana e da Vale, em Brumadinho, quando os serviços de atenção à saúde se viram sobrecarregados com o aumento de casos de transtornos. No entanto, sabe-se que, desde o anúncio da construção de uma barragem, aparecem casos de adoecimento relativos à saúde mental e que estes danos permanecem por vários anos. Dessa forma, ainda é necessário ampliar a compreensão dos reais impactos que estas obras têm na saúde mental da população a fim de garantir uma abordagem capaz de minimizar os danos provocados. De toda forma, a construção de uma política de saúde específica para essa população já seria um instrumento importante.
8 – Quais as perspectivas a partir do estudo? Como ele pode contribuir para a reparação dos danos causados aos atingidos por barragens e prevenção de novos desastres-crimes?
O estudo vem mostrar que o dano causado pela construção das barragens na saúde da população atingida é muito amplo e, por isso, deve ser compreendido dentro de um contexto que inclui a discussão do modelo de desenvolvimento pautado no capital. Permeado por um discurso sobre desenvolvimento, o capitalismo invisibiliza e desrespeita os modos de vida de populações rurais, povos originais, comunidades tradicionais, dentre outros, causando sofrimento e adoecimento em diversos aspectos da vida. Para além de dar visibilidade a esse tema, o estudo pretende criar diretrizes para elaboração de um política de saúde para atingidos e atingidas por barragens que possa contribuir na redução dos danos provocados por estes empreendimentos na saúde da população.