Artigo | O Caso Samarco – a violência colonial que insiste em permanecer
Deborah Duprat é Subprocuradora-Geral da República aposentada, com grande atuação no defesa dos direitos humanos e minorias dentro do Ministério Público Federal. Realizou duas gestões na Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos tendo grande atuação junto as comunidades atingidas por barragens
Publicado 26/10/2020 - Atualizado 29/10/2021
Toda a história da América Latina poderia ser escrita a partir de distintas formas de violência que a assolam desde a sua origem: o episódio da conquista e seus efeitos devastadores sobre as populações indígenas; a escravidão; a violência da exploração extrativista sem limites; a violência epistemológica da alfabetização, que impõe a língua dos dominantes e seus valores como universais; a violência da formação do Estado nacional, em que a homogeneidade por ele pressuposta vai ser expressão do poder colonial. A essas formas de violência histórica e fundacional agregam-se aquelas que derivam da violência de classe, de gênero, de orientação sexual e de tantas outras, de tal forma que é possível dizer que a violência sistêmica está na base da organização das sociedades latino-americanas.
A Constituição brasileira de 1988, na linha de um mesmo movimento que atravessou a região no sentido de sua democratização e descolonização, busca superar esse passado, com muita ênfase na luta contra a desigualdade, contra a marginalidade das culturas não dominantes e contra a destruição da natureza.
Está implícito, nesses documentos, que o esquecimento, a negação, a desterritorialização, o desconhecimento ou desaparecimento de muitos “outros” funcionaram como recurso para a legitimação de políticas, hábitos e regimes de exploração e controle coletivo.
A Constituição de 1988 traz para a centralidade do direito os setores historicamente marginalizados, cujas epistemologias elaboraram os temas da morte, da escassez, do território, da natureza e do poder através de modelos alternativos aos princípios dominantes.
O seu artigo 216 vai reconhecer expressamente a diversidade, no seio da sociedade nacional, dos “modos de criar, fazer e viver” e das “formas de expressão”. E no artigo 3o, que conforma e dá unidade ao seu texto, há uma ideia genuinamente utópica de uma sociedade “livre, justa e solidária”, que se propõe a “erradicar a pobreza e a marginalização”, bem como a reduzir todas as desigualdades. É uma sociedade voltada, no seu conjunto, a “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Vários dispositivos, tratando dos mais diferentes temas, vão reforçar essa ideia regulativa. Veja-se, por exemplo, o artigo 170: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VI – defesa do meio ambiente […] e VII – redução das desigualdades regionais e sociais”.
Diante de propósitos tão explícitos, essa transformação radical, capaz de fazer do mundo um lugar mais justo, mais atento à natureza e à diversidade, deve contar com todos os atores políticos e sociais, neles incluídos os três Poderes, os entes subnacionais, a sociedade civil em sua diversidade e o mercado.
O rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, que completa cinco anos no próximo dia 5 de novembro, revela, no entanto, como o Estado, a empresa proprietária, Samarco Mineração S/A, e suas controladoras, Vale e BHP Billiton, as duas maiores mineradoras do mundo na produção de minério de ferro, estão na contramão da Constituição.
Convém lembrar que, com o rompimento, foram derramados 48,3 milhões de metros cúbicos de lama, atingindo os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, contaminando 100% do Rio Doce, boa parte do litoral capixaba, e outros rios e córregos, em um trajeto que compreende 43 municípios, com 19 pessoas mortas. Mas, passados 5 anos, não houve reparação, muito menos uma relação ética com os atingidos.
Seis meses após o desastre, a União, os dois Estados mencionados e a empresa Samarco firmaram um acordo estipulando a criação de um fundo de R$ 20 bilhões para a recuperação da Bacia do Rio Doce. Esse valor não foi precedido de estudo ambiental e, muito menos, de avaliação do impacto sobre pessoas e grupos¹, alguns destes cuja cosmologia está fortemente associada ao Rio Doce, que, se morto, deixa de irradiar o seu sentido e significado².
Tampouco o Judiciário procurou dar centralidade à dor dos atingidos, em sua diversidade. Até hoje não estão implementadas as assessorias técnicas independentes, que lhes permitiriam, de forma organizada, explicitar o inaceitável, desnaturalizar o familiar e converter o anômalo em matéria visível. O silenciamento dessas vozes e a adesão praticamente incondicional às postulações das empresas é a incompreensão do fenômeno do colonialismo e dos desafios postos pela Constituição de 1988.
Por outro lado, uma reparação que não tenha em conta a trama das relações coletivas de toda ordem, familiares, escolares, laborais, de vizinhança, de compadrio, é incompleta. Também não se reduz a um valor monetário, pois há formas de vida que postulam o valor da improdutividade, o comportamento lúdico, festivo, ou seja, múltiplas direções que constituem modos de resistência à mercantilização infinita do real.
Bourdieu³ lembra que o principal em um ato revolucionário, mais do que a mudança que possa efetuar nas estruturas concretas a que se dirige, é o impacto simbólico que pode gerar nos modos de conceber o político e na visibilização das hierarquias e privilégios que afetam o social.
O Estado brasileiro, nele incluído a sua forma fragmentada de poder, a Samarco, a Vale e a BHP Billiton ou não entenderam os vetores simbólicos da Constituição de 1988, ou seguem indiferentes à violência que produzem, tão parecida com aquela que inaugura oficialmente esse País.
2 KRENAK, Ailton. “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras. Formato digital
3 BOURDIEU, Pierre. “Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique”. Ètudes Rurales 113-0114 (janvier et juin 1989) 15-36