Vinícius e a Assessoria em Construção

Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana São dois de fevereiro de 2018. Sofia está em reunião do MAB em Ponte Nova. Seu pensamento, […]

Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana

São dois de fevereiro de 2018. Sofia está em reunião do MAB em Ponte Nova. Seu pensamento, vez por outra, traz à mente Fernando Pimentel, Governador de MG.

Na primeira imagem, ele dá entrevista no escritório da Samarco, logo após o rompimento de Fundão (5/11/15). Melhor seria junto às vitimas e, não, na casa do criminoso. Em diversas oportunidades, ele tem se mostrado próximo às mineradoras, disposto, no máximo, a melhorar a fiscalização. Na segunda imagem, ele se acha reunido com todos os prefeitos de Minas Gerais na Cidade Administrativa, em BH. Em consequência da nucleação das escolas, imposta no Governo Azeredo (PSDB), as prefeituras têm a responsabilidade de transportar estudantes até o 9º ano e, os demais, em convênio com o Estado, que repassa os recursos. O que ocorre? Os repasses estão atrasados. Paula Cândido, município pequeno, com 10 mil habitantes, acumula dívida de 320 mil reais. Imagine o somatório de tudo nos 853 municípios mineiros.

Em tempo de golpe, seria bom que um governo eleito pela força do enraizada do Partido dos Trabalhadores ajudasse o povo a respirar. Mas isso não é real! O golpe é um vírus, que fragiliza os corpos contaminados. Seu antídoto é antes a Rua que os gabinetes, amarrados pelo beiço.

Encerrada a reunião do Movimento, perto de 18 horas, uma militante sai correndo, por atalho, para assinar nota em restaurante, os outros (três) descem de carro pela avenida e aguardam perto da rodoviária velha. Aí se reencontram, em poucos minutos de espera. Ela vai de carona até sua casa e, os outros, seguem para Barra Longa, onde vão participar de Assembleia Geral dos Atingidos, marcada para 19 horas.

Os laços de proximidade entre militantes costumam tornar-se tão fortes que superam, por vezes, os laços de sangue. Uns se interessam pelos outros; desde as coisas mais simples, como esperar sem reclamar e dar carona.

 Na curta viagem de Ponte Nova e Barra Longa, perto de 50 km, a militante, ao volante, liga o som do carro; quer descanso das reuniões seguidas e ouve música enquanto dirige. Talvez sonhe com o carnaval. O companheiro do lado comenta assuntos triviais, sem tirar-lhe a atenção da música e do volante. Sofia vai quieta no banco de trás.

Aquele relaxamento, porém, dura pouco. O processo criminoso da Samarco, com seus desdobramentos, é vivo e forte. Comenta-se, então, da divisão interna do MPF e do fortalecimento da vertente defensora do protagonismo do povo. Lembram-se os ataques aos movimentos populares; partem de oportunistas: eles interessam foto e recursos financeiros e não toleram a emancipação dos atingidos, pois são o seu ‘rouba-pão’.

Numa linguagem bíblica, aproveitadores querem colocar as ‘ovelhas’ feridas enfileiradas em romarias ou juntas em grandes currais com a desculpa de protegê-las; no fundo, querem tosquiá-las.  Isso é o que se pode chamar teologia da opressão.

A chegada a Barra Longa, com pequeno atraso, interrompe a conversa da militância. Primeiro se busca um canto para estacionar o carro. Depois se dirige à Câmara Municipal, onde acontece a atividade, com quase duzentas pessoas presentes. Sofia fica impressionada com o número de pessoas, o enorme reboliço e a atualidade do crime.

A Assessoria Técnica, uma conquista do Movimento em luta, mexe-se. Um está do lado de fora da Câmara Municipal, no passeio, acolhendo, com sorriso no rosto e ‘boa noite’. Outro vem empurrando uma caixa de som, em substituição à outra, com som cortado, rouco, quase inaudível. Dois ou três se acham na entrada, atrás de um balcão, entre papéis. Esses ajudam com informações e lista de presença. Duas técnicas se encontram perto da tela, na qual se lê ‘Assembleia Geral dos Atingidos’, parece aguardarem momento de apresentação. Os demais, membros da Assessoria, acham-se espalhados entre o povo, num e noutro serviço.

Sofia mira uma das presentes, diferenciada. Traz camisa de malha verde, calça jeans azul e sandália surrada. O cabelo, comprido e amarrado, lhe chega à cintura. Tem o rosto sereno. Olhar firme e atento. Move-se muito, mas com extrema discrição. Conversa com um e outro, ao ouvido. Quase não é percebida. Quando para, em local tático, sua mão vai ao queixo, pensativa. Às vezes cruza as mãos atrás das costas. Se quer enxergar melhor qualquer coisa, é capaz de equilibrar-se sobre as pontas dos pés e, se necessário, tomba a cabeça para um lado ou para outro, quando alguém maior, à frente, lhe fecha a visão.  Se fala, seu pensamento é claro. Sente que o MP pode dar novos passos no reconhecimento do protagonismo do povo organizado. Percebe que a equipe de assessores precisa seguir um processo continuado de formação. Intui que o Movimento há de fortalecer sua organicidade: ‘só um corpo forte, constituído de dezenas e de centenas de membros, com sangue correndo na veia, com sensibilidade nos nervos, com cabeça coletiva, com o volante à mão e com enraizamento em grupos de base é capaz de safar-se das armadilhas e ir pra além do direito’.

Sofia não tem dúvida! Aquela mulher é uma dirigente!

A Assembléia Geral dos Atingidos, em Barra Longa, faz parte de um processo maior. Um casal atingido coordena. Quando a Renova está em cochicho, na Assembléia, a mulher diz: ‘vocês precisam nos escutar!’

Foram três meses de trabalho árduo da Assessoria Técnica, ouvindo, sentindo, sistematizando, debatendo nos grupos de base, no campo e na cidade. A pauta é um documento vivo. Sua primeira parte trata do conceito de atingido: a empresa busca reduzi-lo ao enlameado e o Movimento procura ampliar o conceito, aplicando-o a toda família prejudicada pelo crime e por seus desdobramentos. Sua segunda parte relata a situação vulnerável dos atingidos. Essa atualidade do crime se deve a duas razões: ações centradas no emergencial sem perspectiva de solução duradoura e sobreposição de crime sobre crime. Sua terceira parte fala das reivindicações. Uma lista quase infindável. A proposição do reassentamento de Gesteira arranca aplausos.

Sofia procura ajeitar-se num lugar de onde possa acompanhar a Assembleia e a movimentação do ambiente. Repara cada coisa. Um rapaz, que vai saindo, pedindo licença aqui e ali, diz que ‘isso não vai dar em nada’. Um antigo e influente político da cidade cochicha ao ouvido do colega sugerindo que o Prefeito e vereadores presentes deveriam estar à frente e, não, escondidos lá atrás. Muitas pessoas, de pé, escoram-se na parede ou pilastra e revezam o peso do corpo, sobre uma perna e outra. O calor é grande! O garrafão de água seca e, ligeiro, alguém vai providenciar. Crianças , muitas crianças, gritam, circulam, passam em qualquer greta, quase por baixo da perna dos adultos, brincando. Não há ciranda! Forma-se quase uma fila de gente, que entra e sai, e, quem fica na passagem, sofre um toque ou dois nos ombros, de alguém pedindo licença. Um atual funcionário da Renova, antes de movimento social, passa rente a Sofia, olha-lhe o rosto, diz um ‘oi’, e sai para fumar ao ar livre. Seu riso amarelado lembra Judas vendido por dinheiro. Muitos entre os presentes enrolam a pauta na mão ou folheiam ou abanam-na perto do rosto para aliviar o calor. Alguns aproveitam o momento para articulação, formando pequenos grupos e trocando números de celular.

Tomando o microfone, a Assessoria esclarece pontos importantes. Conceitua ‘reparação integral’: centralidade da dor da vítima, na construção da pauta e no real poder de decisão; responsabilidade do criminoso pelo crime e por seus desdobramentos para impedimento de sua repetição; reconhecimento de dano material e imaterial, exemplificado como a morte do sonho; distinção entre mitigação – mecanismo para diminuição do impacto enquanto não se restabelecem a renda e o modo de vida -, indenização – perda mensurável e transformada em valor financeiro – e compensação – perda irreparável substituída por outra coisa. E, depois, faz uma denúncia da Renova, confirmada pelos presentes. A empresa obriga o atingido a guardar sigilo sobre seu processo de negociação através de assinatura de termo de compromisso. Uma aberração! E desconta a ajuda emergencial na indenização final. Um roubo!

Após a fala das vítimas, a maioria em tom de desabafo, o microfone é repassado ao representante da Renova o qual, claramente irritado, reclama do que chama ‘falta de fluxo de informações’. E explica: ‘A Comissão de Atingidos tem 31 membros, em Barra Longa, e não sei a quem procurar. Os e-mails são impessoais’. Iniciam-se resmungos de indignação entre os presentes. Ele continua: ‘Em Mariana é diferente! Lá a comunicação flui. A Renova até paga escritório para os trabalhos da Comissão’.

Sofia repara a Assembleia e sente o clima tenso. Não é para menos! O que o representante da Renova disse parece mais provocação que informação. Alguns atingidos, de tão enraivecidos, estão prestes a perder a cabeça. Todo mundo resmunga, alto. Quase do nada, um rapaz deixa sua cadeira e se coloca de pé, bem ao lado do Senhor, da Renova. É um militante do Movimento! Ele quer o microfone e, estar perto, é uma forma de pressão. O Senhor se irrita ainda mais, falando, seguidamente. Mas, por fim, acaba cedendo o microfone. Misturam-se, então, vaias e aplausos.

Quanto mais um povo tem dificuldade para organizar-se tanto mais gosta de alguém que brigue por ele e, se o encontra, fica animado na torcida. Com raízes fincadas no mais fundo da histórica assistência e opressão, custa-lhe muito ser sujeito. Mas não há outro caminho.

Os aplausos se tornam exponencialmente inflacionados quando o rapaz, no auge de seu enfrentamento à Renova, lhe pergunta: ‘de que adianta pagar escritório se nem o reassentamento de Bento sai do papel?’.

O Senhor, que caminhava para o seu assento, sente-se ofendido; vira-se, falando alto e gesticulando. Ninguém ouve o que ele fala por causa do barulho. O colega dele, antes inserido em movimento social, vai ao seu encontro, cochicha-lhe algo ao ouvido e, só então, ele procura uma cadeira para acomodar-se, embora ainda visivelmente irritado.

Por trás dessa aparente confusão, Sofia percebe a intencionalidade da Assembleia, um passo no movimento maior de organização do povo. O principal é que vítimas têm a prioridade da fala. Dizem o que antes não puderam ou reafirmam o que já disseram, após mais de dois anos de rompimento de Fundão.  E saem animadas.

Ao menos temporariamente, durante a Assembleia, suspende-se a prepotência da empresa. Seu ‘poder infinito’ se desmitifica.

No cotidiano, porém, a situação é outra. Por um lado, a empresa reina (quase) absoluta, nos governos, nas universidades, nas ONGs, no senso comum. Por outro lado, a conexão entre Assessoria Técnica e acúmulo de força popular não é automática. Ela precisa ser vivenciada, cotidianamente, em espécies de ensaios: nas assembleias, nos grupos de base, no debate, construção da pauta, a partir do olhar e do sentimento do povo. Nessa compreensão, perguntar se a assessoria vai cumprir o seu desafiante papel é perguntar se ela tem isso em perspectiva. Não importa se em Barra Longa, em Mariana, na Bacia do Rio Doce ou em qualquer lugar do mundo.

A prática militante do (a) profissional é imprescindível, pois a ‘assessoria’, uma experiência nova, vai ser o que ela mesma for sendo, no dia a dia. Conforme lembra Vinícius de Morais, ‘o operário faz a coisa e a coisa faz o operário’.

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