A faixa

A vida militante, em qualquer idade, em qualquer parte do mundo, movida por grandes causas, decisivas para o rumo dos povos, tem um quê de beleza e cumplicidade inexplicáveis. Não […]

A vida militante, em qualquer idade, em qualquer parte do mundo, movida por grandes causas, decisivas para o rumo dos povos, tem um quê de beleza e cumplicidade inexplicáveis. Não é uma ‘coisa’ pontual e assessória do tempo que sobra, no tempo de folga, na segurança de um salário gordo, após o conforto da casa garantida. Isso é, no máximo, apoio! A vida militante é uma entrega, uma aposta, uma opção de vida desafiante, mas necessária, principalmente numa conjuntura tão adversa e, por isso, tão bela.

Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana (MG)

O tempo é curto, a pauta longa e o deputado, cujo gabinete é ocupado para reunião da Coordenação do Acampamento do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) – no Saguão da Assembleia Legislativa de Minas Gerais -, precisa do espaço para atividade do mandato.  Além disso, existe agenda do Coletivo de Negociação, do qual a maioria ali faz parte, fora da Assembleia, no BDMG – Banco do Estado de Minas Gerais. Falta meia hora, mas a saída deve se dar em quinze minutos por causa do trânsito infernal.

A necessidade do gabinete para atividade do Mandato é mais uma razão formal que real já que o Movimento praticamente não a leva em conta.  A consciência em processo emancipatório dispensa licença para uso de espaços públicos e luta.

Por tudo isso, a Militante, visivelmente ansiosa, aguarda o momento de orientação sobre a confecção da faixa. Custa-lhe segurar aquele ‘segredo’ pela importância que ela toma numa conjuntura completamente adversa à classe trabalhadora.

Enquanto corre a reunião, a Militante mói e remói. Pensa nas enormes dimensões da faixa: 80 metros de comprimento por 2,40 de largura, dividida em 18 partes; cada qual uma letra, imensa. E elabora, mentalmente, na sua cabeça de dirigente, a proposta de feitura para ficar pronta em tempo hábil e surtir o efeito desejado.

Quando a faixa, o último ponto, entra em pauta, a Militante, em três minutos, no máximo, passa sua mensagem. Sabe que precisa ser breve e clara para evitar resistência e não extrapolar o tempo. Após explicar o objetivo, propõe sua metodologia de confecção: três na coordenação geral, que dirigem três grupos com cinco pessoas cada, incluindo a coordenação; cada grupo se encarrega de fazer seis letras. E informa que a faixa deve estar pronta no final da tarde e embarcada no ônibus à noite. Depois pergunta: ‘quem pode organizar isso?’ Todos os olhares, antes fixos na Militante, agora circulam, cruzam-se, e vão pousar, por fim, noutra Militante, da Comunicação, que, prontamente, aceita a tarefa.

‘Tarefa dada, tarefa cumprida!’, lembra uma das presentes. Esse é um chavão nos movimentos populares, mas cheio de sentido. No limite do acirramento da luta de classe, o cumprimento de uma ‘simples’ tarefa, como descarrilhar um trem, pode ser a diferença entre a vida e a morte; por isso esse exercício é tão importante.

Pelas 14 horas, o Acampamento do MAB, com colchões espalhados por todo o saguão da ALMG, sede lugar à Assembleia de professores da rede estadual. Os símbolos do Movimento estão por toda parte. Os atingidos, também, estão presentes. A atividade é uma convocação extraordinária para definição sobre paralização ou não da Categoria. Panfletos amarelos, de viés esquerdista, espalham-se entre os participantes, encontrando, aqui e ali, algum adepto.

A Presidenta da CUT Minas agradece a presença do Movimento e, na sua fala, reconhece no MAB um parceiro histórico na construção do campo de esquerda no Estado, particularmente com seu método de luta. Atenta ao panfleto amarelo e ciente de seu conteúdo, mostra as conquistas no Governo Pimentel, os enormes desafios e, em seguida, orienta por mecanismos de pressão sem paralização geral.

Os governistas veem nisso uma assinatura de papel em branco; os esquerdistas, peleguismo; mas o pensamento dialético sabe dar o passo adiante sem colocar vento no moinho do inimigo. É que uma posição muito dura com Pimentel pode fortalecer o golpismo do governo federal.

Enquanto segue a Assembleia dos professores, que dura a tarde toda, um olhar atento nota a movimentação do lado direito do saguão da Assembleia. Ali se dá a feitura coletiva da faixa. A imensa maioria é gente muito jovem. Uns cortam, outros marcam e escrevem. À mão um dispositivo que, com um gatilho, espirra a tinta e, pouco a pouco, vão se formando as imensas letras.

À tardinha, tudo está pronto! Dobram-se as faixas, cuidadosamente, e a Militante da Comunicação, anota no verso a letra correspondente para não se perder a ordem da frase.

Além de BH, a programação do Acampamento prevê atividades na barragem de Miranda, no Triângulo Mineiro, incluída no plano de privatização do governo federal, com leilão marcado para setembro. A distância são 600 km e na hora da saída dos manifestantes, marcada para 22 horas, se pode ver a fila da faixa, com suas letras separadas, dobradas, sobre a cabeça ou debaixo do braço de alguém.

A vida militante, em qualquer idade, em qualquer parte do mundo, movida por grandes causas, decisivas para o rumo dos povos, tem um quê de beleza e cumplicidade inexplicáveis. Não é uma ‘coisa’ pontual e assessória do tempo que sobra, no tempo de folga, na segurança de um salário gordo, após o conforto da casa garantida. Isso é, no máximo, apoio! A vida militante é uma entrega, uma aposta, uma opção de vida desafiante, mas necessária, principalmente numa conjuntura tão adversa e, por isso, tão bela.

Ao raiar do dia, antes das seis horas, ônibus e carros pequenos vão chegando à barragem de Miranda. Além dela, outras três hidrelétricas da CEMIG estão para ser leiloadas: São Simão, Jaguara e Volta Grande. À venda por apenas 11 bi, podem render 2 bi e meio por ano.

À direita da Rodovia, fica o local combinado do encontro. Os carros param na beira da pista. Há quem desça do ônibus e sai andando, aparentemente sem rumo, até encontrar um matinho, certamente por necessidade fisiológica. Dois militantes entram pelo portão grande, descida íngreme, pavimentada. Cachorros enormes, presos por grade, latem, enraivecidos. Outro portão, esse semiaberto. Uma senhorita vem na direção deles e, como a adivinhar-lhes o pensamento, indica uma mulher, manquitolando, logo abaixo.  É a dona do Camping. Com um sorriso largo, ela confirma o horário de entrada, 7 horas, e olha o relógio, para mostrar que ainda é cedo, depois diz que há umas pendências quanto ao acerto. Os militantes fingem-se tontos; agradecem e, numa rápida olhadela, avistam o lago da barragem, lá embaixo, com trilhas e local de banho.

Além da simpatia – que lhe parece inata -, aquela senhora tem outra razão para o sorriso tão grande: corre nos bastidores que o seu Camping cobra uma taxa de entrada de cinco reais de cada manifestante, o que lhe rende, em um só dia, algo perto de sete mil reais. Seu trabalho é pouco já que a comida é feita pelo próprio Movimento. E seu lucro cresce com as vendas no bar, pois, entre os manifestantes, há sindicalistas bem abonados.

Às sete horas, em ponto, os portões se abrem e quase uma multidão desde o morro. O lanche da manhã, organizado por equipe do MST, encarregado da alimentação, está pronto. Formam-se duas filas compridas e cada qual, após servir o café e pegar dois pães com mortadela, ajeita-se como prefere, numa pedra, na grama ou num canto qualquer.

A Militante, centrada na luta, apesar do ambiente light, convida a Coordenação do MAB para reunião. São oito horas e trinta minutos. Entre os pontos de pauta, estão a logística do dia e a faixa. Será necessária mais de uma centena de pessoas para segurá-la para a foto, através de Drone, bem em cima do muro de Miranda.

Fora essa reunião, e encaminhamentos de bastidores, toda a manhã dir-se-ia eclética naquele Camping. O dia é de luta da frente unitária contra a privatização das hidrelétricas da CEMIG que, juntas, respondem por 50% de sua geração. Privatizá-las é inviabilizar a empresa. Mas o Camping tem cara de festa.

O som, acoplado a um carro pequeno, toca desde Paula Fernandes a Raul Seixas. Vez por outra um sindicalista antigo arrisca uma música ao microfone, banhado de saudosismo. No bar, as cadeiras se enchem e, as mesas, vão ficando entulhadas de tudo. Os que têm dinheiro bebem, comem, enquanto a imensa maioria dos atingidos, tendo tomado café cedinho, aguarda o momento do almoço, servido ao meio dia.

Alguém que olhe de fora, sem visão dialética, exigida no esforço de unidade nessa conjuntura pesada, diria tratar-se de confraternização antes que de manifestação.

A Militante, sempre atenta ao central, sonhando o socialismo, como a fazer sopa gorda de pés de galinha magra, lembra Mao Tse Tung: ‘Uma revolução não é um convite para um jantar, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado, ela não pode ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. A revolução é uma insurreição, é um ato de violência pelo qual uma classe derruba a outra’.

Instigada pelo cheiro do almoço, uma fila vai crescendo, crescendo. São doze horas e trinta minutos. A fila entorta num local e noutro, à procura de sombra, pois o sol é escaldante – o calor pode chegar a 40 graus – e alguns presentes estão habituados ao ar condicionado, de casa ou do local e trabalho. Idosos e crianças passam à frente. Quem tem o kit militante também; encomendaram-se pratos descartáveis de última hora, mas ainda não chegaram.

A Militante, indo ao microfone, avisa que as pessoas encarregadas da faixa devem almoçar antes, pois precisam estar, a postos, às treze e trinta, na rodovia. Ouve-se um zum-zum-zum. Parece há mais gente para ‘furar’ a fila do que, depois, para carregar a faixa.

A Marcha rumo a Miranda, que sai perto de quatorze e trinta, segue enorme e bem colorida, com muitas bandeiras e faixas, uma delas endereçada ao governo chinês. A China é uma das principais interessadas nas hidrelétricas.

Pelo caminho, existem duas barreiras com policiais e seguranças privados. Mas nesse dia em que atingidos e trabalhadores se unem em defesa da CEMIG, (quase) tudo está liberado. Um que outro tem a bolsa revistada.

A dialética tem seu preço! A CEMIG explora seus operários, a conta de luz é um roubo, ela deu uma cossa nos atingidos no dia três de abril de 2006, em Belo Horizonte; mesmo assim, no momento em que corre risco, decidem defendê-la.

A única novidade do trajeto, entre o Camping e o muro de Miranda, são umas abelhas que, por alguma razão, amontoaram-se no poste, do lado esquerdo, e poderiam representar algum risco para a multidão. Não falta um Segurança que, com riso aberto, orienta os passantes, indicando com o braço, apontando o outro lado da pista.

Numa bifurcação, a poucos metros do muro, a Marcha segue grande rumo ao Mirante, subindo o morro, até uma altura de 70 metros em relação ao lago, de onde se vê, além do belo horizonte, os pedaços de faixa dobrados, no chão, próximos aos militantes, e alguns policiais, junto ao portão de entrada do muro da hidrelétrica. A militância vigia a faixa, cuidadosamente, e os policiais vigiam a militância, atentamente.

A disputa de classe afrouxa, mas não cessa.

No Mirante, sob tenda com ar fresco, estão as autoridades, todas empenhadas no Ato Política em Defesa da CEMIG. A figura mais importante, porém, são os manifestantes e a militância. A tenda, que é grande, fica lotada.

Iniciam-se as falas. Todos destacam o poder agregador da Causa, unindo empresários, sindicalistas, movimentos populares e os mais diversos partidos. Abaixo-assinado, apesar das fissuras do golpe, consegue adesão de todos os 77 deputados da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Entre as falas, há umas convencionais, outras eloquentes, outras muito sábias, feito a da Militante. Ela ‘fala’ junto com o povo, cantando: ‘A CEMIG é nossa, a CEMIG é do povo, se já pagamos não vamos pagar de novo’.

Todos aplaudem!

Encerra-se a cerimônia oficial. Boa parte da Marcha, agora espontânea, segue para o Camping. Os manifestantes organizados no MAB, previamente orientados, tomam o asfalto que leva à estrada sobre o muro de Miranda. Os PMs, aí estacados, reforçam a segurança no portão. Carros pretos, enfileirados, apontam na curva, enquanto um policial grita, quase loucamente: ‘liberem, liberem a pista!’. É o Governador! Os carros vêm chegando e, num movimento sincronizado, o portão se abre; imediatamente à passagem dos veículos, fecha-se, mecanicamente.

Esses guardas, na verdade, assemelham-se a robôs!

Segundos após o sumiço dos carros do outro lado da barragem, mais um policial se aproxima da militância, aglomerada junto ao portão fechado, gritando: ‘Cadê o dono do Drone? Cadê? Cadê?’. Muita gente olha para o alto. O Drone, que voa, é recolhido, não se sabe por quem e, logo em seguida, em meio a um grande barulho, apontam dois helicópteros, subindo, meio tombados, em curva, até tomarem altura e sumirem de vista.

Agora as atrações se voltam para a faixa. A militância sabe que é necessária mais de uma centena de pessoas, mas os policiais permitem a entrada de menos de cinquenta. Com o portão entreaberto, pedaços de faixa à mão, os manifestantes vão entrando, acompanhados por uma policial. Vai junto um Senhor da CEMIG, com crachá no peito.

Na metade da estrada, sobre o muro de Miranda, as dezoito partes da faixa são colocadas no chão, uma ao lado da outra, para formar a frase desejada. O vento é muito forte, feito as turbulências da conjuntura. A militância cata pedra aqui e ali, as maiores, e coloca sobre a faixa para segurá-la. Em vão! Firmam as mãos, mas não dão conta. Negociam, então, com a policial e buscam um reforço militante.

A militância dobra. Mesmo assim, o trabalho é árduo. Cada parte, firmada por seis pessoas, precisa ficar bem ajustada à outra. O vento, que não dá trégua, assovia e, por vezes, entra por baixo num e noutro ponto e estufa a lona, quase levando tudo. A militância grita, seguidamente, indicando o lugar que precisa de mais mãos. Por fim, uma voz se destaca, contando ‘um, dois, três’. Num passe de mágica, o lado esquerdo da faixa levanta-se, firmado, agora, por uma energia incomum, de mãos que se somam, enquanto o lado direito fica preso ao chão, com a força de mãos, pés e pedras. Dois Drones que sobrevoam, de um lado e de outro, tiram a foto, que vai para o mundo: ‘Não à privatização!’.

Palmas e gritos! Muitas palmas e muitos gritos!

A Militante, num ar de tarefa cumprida, exclama, sorridente: ‘quando a esquerda se levanta, unida, a foto da história fica muito linda!’.

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