Germinação é um mistério

Semente boa não é semente de fama, de marca, mas semente no chão. Membros do MAB, espalhados em toda a Bacia do Doce, de Regência à água vertente, dão sinais […]

Semente boa não é semente de fama, de marca, mas semente no chão. Membros do MAB, espalhados em toda a Bacia do Doce, de Regência à água vertente, dão sinais de que podem germinar até no rejeito estéril de minério

Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana (MG)

A Militante abaixa-se para descansar, firmando-se sobre os calcanhares e, reparando a grama, vê uma semente. Pega-a e, pensando que naquele rejeito de minério não germina nada, absolutamente, coloca-a no bolso pra jogá-la em terra fértil.

 Enquanto olha a semente, ouve um rebuliço, que associa a preparo pra foto. Diante do grito ‘vai cair daí!’, a Militante levanta a cabeça, sem erguer-se do chão, e avista alguém sobre o terraço da casa à frente, de celular à mão, pronto pra fotografar. Mas surge um murmurinho, que vai crescendo, crescendo, do lado esquerdo, o que faz a militante supor, com razão, que a foto oficial vem desse outro lado. Impossível a ela enxergar o ponto exato de onde, em segundos, se ouve o ‘pronto!’, seguido de dispersão, já que está separada dele por dezenas de pessoas em pé.

Está fora da foto oficial! Ao mesmo tempo, porém, está presente na foto, pois é capaz de levar a mão à imagem, gravada em sua cabeça, e tocar a ponta do dedo exatamente no local onde está, nesse dia 4 de setembro de 2015, sem fugir um milímetro sequer, nem para um lado nem pro outro.

Atrás dessa onda humana, aproximadamente quinhentas pessoas, agora na foto, onde o mais importante é a face do Movimento, fica a quadra coberta de Bento Rodrigues. Ali, bem ali, atingidos do Brasil inteiro chegam, cada qual se ajeitando como pode. Um que outro sente o peso do cansaço, encosta à parede ou se senta na arquibancada. Desânimo, porém, é um sentimento que não se vê, no rosto de ninguém, apesar da maratona de luta: plenária em Paracatu, pernoite em Águas Claras, sem contar que muitos vêm de mobilizações contra o golpe em outras regiões do país.

Os moradores de Bento se dirigem ao centro da quadra e, logo em seguida, uma voz feminina, também militante, motiva todos os presentes a se aproximarem e formarem um círculo em torno de pessoas que, sendo moradoras de Bento, trazem a marca trágica de um processo criminoso, cujo ápice é o rompimento de Fundão, no dia 5 de novembro de 2015. A frase na parede que resta de pé, numa ruína, resume bem essa verdade: ‘A Samarco queria nos matar!’.

Seguem-se diversos depoimentos, acompanhados atentamente. Se aparece um cochicho, alguém chama a atenção, pois o espaço é muito importante: ali, naquele momento, podem revelar-se sementes.

Pelas falas, vê-se que os moradores de Bento não são mais os mesmos. Não porque escaparam à morte por um fio, pela perda de parentes e conhecidos, por estarem em casas alugadas – fora de seus lares -, por verem o direito transformar-se em apenas promessa de casa pro distante 2018. Os moradores de Bento não são mais os mesmos porque suas cabeças mudaram. A percepção dos fatos, agora, é outra. O choro emocionado cheio de razão, a busca desesperada de um salvador da pátria – com tantos oportunistas de plantão – cede lugar, agora, à consciência de luta, que vai crescendo. É o mistério da germinação!

Semente boa não é semente de fama, de marca, mas semente no chão. Pelo menos assim pensa a Militante. Membros do MAB, espalhados em toda a Bacia do Doce, de Regência à água vertente, dão sinais de que podem germinar até no rejeito estéril de minério. E no coração das pessoas; uns petrificados da longa história de opressão, desiludidos, e, outros, ainda muito machucados nessa ferida aberta da mineração.

Uma parte dos moradores de Bento já sabe que, sem força popular, será enxotada como cachorro sem dono. Essa percepção indignada, transformada em rebeldia organizada, parando estrada, trancando linha, reocupando o próprio território, ouvindo as histórias uns dos outros, vai desmontando o quebra-cabeça dos vários crimes bem engendrados, que fazem de empresas assassinas a mãe da filantropia.  Considerando-se que o principal poder dessas empresas está nessa crença, a emancipação de consciência, de uma pessoa que seja, já diminui o poder delas.   

Esses monstros da mineração, apesar de tudo, continuam controlando e fuçando Bento. Ali, ao menos aparentemente, eles removem mais montanhas que a fé. Todo o entorno do Distrito é um canteiro de obras. Grandes máquinas se movimentam por toda parte, rapidamente, e, se por um lado, dilaceram o coração de quem nasceu e viveu ali, de outro lado denunciam a pressão desmedida sobre os operários, na corrida contra o tempo, em torno de seiscentos.

A construção do Dique 3, rente a Bento, logo acima, vai a pleno vapor, com a terra empurrada vale afora, transformada em muro.

 Atente-se para esse fato: o muro é de terra!

O Dique 4, já iniciado, mas com as obras paradas nesse domingo de mobilização, gera uma revolta ainda maior. Uma atingida denuncia que a Samarco consegue uma liminar pra fazer três furos de sondagem, invade a terra e revira tudo. É desolador! Esse dique, se concluído, poderá encobrir, pra sempre, a lembrança do crime. Há estimativas de existirem em torno de seis bilhões de toneladas de minério na região e, desses, ao menos quatro bilhões seria rejeito. Todo o vale, no Bento e seu entorno, pode ser completamente soterrado.

Os argumentos sobre os quais a empresa assenta os diques são tão frágeis quanto a terra movediça, que lhes prepara os muros. São argumentos arranjados nos bastidores, nas barganhas, nos conluios. A empresa alega medida de segurança, dizendo que os diques evitariam novas tragédias caso Germano viesse a se romper. Mas não! Os diques, eles próprios, é a nova tragédia! Apagando a memória, eles criam o ambiente pra retomada da exploração de minério e de sua ampliação com o fim único de acumulação de capital, uma afronta à soberania do povo.

Cai a tarde! A Militante, entre os manifestantes, vai seguindo pelas ruas de Bento, em meio às ruínas, que gritam no seu silêncio medonho.

Logo que chega ao ônibus, recosta a poltrona, espicha as pernas e, quase deitada, vai revivendo o dia: a chegada em comboio, a marcha em fileira, os gritos, as bandeiras nervosas do vento, a marca da lama quase na copa da imensa árvore, essas imagens lhe ficam impregnadas na mente. Sua indignação é muito grande! Só não é maior do que o sono, naquele calor, que faz seu corpo bambo, bambo.

Quase inconsciente, enfia a mão no bolso, pega a semente que encontrara no chão, lembra vagamente a infertilidade daquele solo e segue dizendo que ‘germinação é um mistério!’, até ser tomada completamente pelo sono.

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| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

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