Rios da Amazônia entram na vitrine da privatização: querem destruir o Tapajós, o Tocantins e o Madeira
O decreto que coloca os rios Tapajós, Tocantins e Madeira à venda entrega o futuro da Amazônia ao agronegócio e às mineradoras. Mas o que isso significa para as comunidades que vivem e dependem desses rios?
Publicado 02/10/2025

No dia 28 de agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 12.600, que inclui mais de três mil quilômetros de trechos navegáveis dos rios Tocantins, Madeira e Tapajós no Programa Nacional de Desestatização (PND). A justificativa oficial é ampliar a logística e o transporte hidroviário do país.
Na prática, porém, a medida abre caminho para que empresas privadas passem a controlar rios estratégicos da Amazônia, ameaçando diretamente a vida de milhares de famílias ribeirinhas, povos indígenas e comunidades tradicionais que dependem dessas águas para viver.
O atual projeto de leilão das hidrovias foi lançado em 2023, sob o nome de Plano Geral de Outorgas Hidroviárias (PGO), pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e o Ministério dos Portos e Aeroportos. Agora, com o decreto, o processo avança para consolidar o chamado “Arco Norte”: um conjunto de rotas de escoamento da produção do agronegócio, baseado em rodovias, ferrovias e hidrovias que ligam a Amazônia aos portos do Norte do Brasil.
Povos da Amazônia em risco
Para as comunidades, o decreto é mais um capítulo da histórica violação de direitos na região. A medida desconsidera a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos tradicionais sobre projetos que afetam seus territórios.
De acordo com Jaqueline Damasceno, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), “o processo de privatização desses rios vai impactar gravemente os povos amazônicos, sobretudo as comunidades tradicionais. Os ribeirinhos que lá vivem têm uma ligação especial com as águas. Novamente, veremos diversas violações de direitos humanos e a perda da soberania desses povos sobre seus territórios”. A ameaça não é abstrata. Apenas no trecho do rio Madeira, por exemplo, vivem 52 comunidades ribeirinhas, com mais de 15 mil pessoas que dependem do rio para beber, cozinhar, pescar, se locomover e manter suas culturas vivas.
O que está em jogo
O governo federal afirma que o modelo de concessão reduzirá custos logísticos, ampliará a competitividade e atrairá investimentos. Todavia, quem ganha são grandes corporações como Cargill, Bunge, Vale, Hydro e Grupo André Maggi, empresas já conhecidas por violações socioambientais na Amazônia.
A privatização facilita a construção de portos fluviais, terminais de carga e obras de dragagem, muitas vezes custeadas com recursos públicos, mas operadas por empresas privadas em busca de lucro. O exemplo mais emblemático é a Hidrovia Tocantins-Araguaia, apelidada de “hidrovia da morte” por seus impactos sociais e ambientais.
Enquanto isso, quem perde são os povos tradicionais, que podem ver seus rios transformados em corredores exclusivos do agronegócio:
- Privatização da natureza: rios, que são patrimônio coletivo, passam a ser controlados por grandes empresas;
- Ameaça à soberania popular: o interesse do capital se sobrepõe às necessidades do povo;
- Risco para comunidades: populações podem perder o livre acesso à água e à pesca, além de sofrer com ruídos, poluição e restrições à navegação;
- Falta de consulta: o decreto foi imposto sem ouvir quem será diretamente atingido.

O caso do Rio Madeira
Em Rondônia, o impacto já é sentido. Para Missay Nobre, da coordenação estadual do MAB no estado, a concessão “é um projeto de destruição e morte, que ameaça a vida de quem depende do rio para sobreviver e manter seus modos de vida”.
Ela alerta que apenas a hidrovia do Madeira tem custo estimado em R$ 561,35 milhões. “O Madeira é hoje um dos principais rios usados para escoar soja. Em fevereiro, a empresa Bertolini realizou a maior operação de transporte de grãos do país, movimentando 75 mil toneladas, equivalente a R$ 165 milhões, de Porto Velho até Santarém. Esse lucro bilionário só é possível porque querem dragar e privatizar o rio, mas a que custo? Até hoje a população não foi consultada”, denuncia.
O Madeira, lembra Missay, é um rio andino, formado pelos rios Bení, Mamoré e Madre de Díos. Por ser barrento e instável, sofre mudanças constantes de leito, inundações e erosões, tornando imprevisíveis os impactos da dragagem. “As comunidades questionam se poderão continuar captando água, pescando, navegando, ou se terão de pagar para usar o rio. O barulho das máquinas, a poluição e a chegada de estranhos já preocupam milhares de famílias. Nada disso foi respondido pelo governo”.

A luta em defesa da vida
Apesar do avanço do decreto, comunidades e movimentos sociais resistem. “Estamos monitorando os estudos feitos pela Antaq e levantando erros e omissões para cobrar esclarecimentos. Também estamos mobilizando as comunidades e buscando apoio em órgãos de justiça. O MAB é contra a concessão de rios na Amazônia, pois sabemos que eles têm direitos e que milhares de pessoas dependem deles. Vamos continuar organizando nossa luta em defesa do povo e da Amazônia”, reforça Missay.
Ela ainda explica que “o Decreto nº 12.600, representa mais um passo na entrega da Amazônia e de seus bens naturais ao capital privado. Em vez de fortalecer a soberania energética, alimentar e ambiental do país, o governo aposta em um modelo que concentra riquezas nas mãos de poucos e aumenta as violações de direitos. A luta em defesa dos rios é também a luta em defesa da vida, dos territórios e da soberania do povo brasileiro. O Tapajós, o Tocantins e o Madeira não estão à venda!”.
COP30 e as contradições do governo
A poucos meses da COP30, que será realizada em Belém, o decreto expõe contradições profundas. Enquanto o Brasil se apresenta ao mundo como liderança no combate à crise climática, entrega seus rios ao agronegócio e às mineradoras.
Se nada mudar, a COP30 corre o risco de se transformar em um palco de discursos vazios e falsas soluções, sem enfrentar a raiz do problema: um modelo de desenvolvimento baseado na exploração predatória da Amazônia e no sacrifício de seus povos.
