Atingidos de São Sebastião (SP) seguem em áreas condenadas pela Defesa Civil diante de omissão do governo e prefeitura municipal
Novo relatório do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), afirma que 21.387 moradias do município estão em áreas sujeitas a deslizamento ou inundação, conforme informações de jornalista que teve acesso ao relatório
Publicado 09/07/2025 - Atualizado 09/07/2025




“Você imagina o que é para um ser humano, para uma mãe ou um pai, voltar para uma casa, quando você tem duas crianças, e pode vir uma chuva forte e derrubar tudo? Porque aqui não teve corte de árvore, não teve uma estrutura de segurança adequada. E eles – funcionários da Prefeitura – não deram nenhuma satisfação pra gente. Já se passaram dois anos – vamos falar a verdade – e eles não voltaram aqui, não falaram nada. Eu fico com medo, porque eu estou com minhas filhas dentro da minha casa nessa situação”, desabafa Greice Santana, moradora do Núcleo Tropicanga, uma das localidades atingidas pela tragédia de São Sebastião em 2023.
Assim como ela, muitos moradores de áreas de risco, cujas casas foram condenadas pela Defesa Civil, continuam a viver sob a sombra do desastre que devastou a região há dois anos e quatro meses, deixando 64 pessoas mortas. Apesar das obras de contenção e adaptação em andamento no município, um novo estudo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), contratado pela Prefeitura, revela que a cidade continua vulnerável a deslizamentos de terra. O documento, de 485 páginas, não foi tornado público pelo órgão municipal, mas suas informações foram divulgadas pelo jornalista Helton Romano, que teve acesso ao conteúdo na ação que o Ministério Público (MP) move contra a Prefeitura da cidade, por negligência.
O relatório aponta que parte das obras de contenção realizadas nas áreas de risco está danificada ou inacabada. “Se não forem devidamente concluídas ou corrigidas, podem ter sua vida útil comprometida no longo prazo”, adverte o Instituto.
Ainda segundo Helton, o levantamento contabilizou 21.387 moradias em áreas sujeitas a deslizamento ou inundação. Fotos do relatório, divulgadas pelo jornalista em suas redes sociais, mostram as contenções com problemas estruturais, construídas em áreas classificadas como de risco alto, na Vila Sahy e em Juquehy. Segundo a Prefeitura, o novo relatório preliminar indica dois setores classificados como de risco muito alto, 36 de risco alto e 42 sob monitoramento.
Além dos atingidos do bairro Boiçucanga, onde fica o Núcleo Tropicanga, moradores de outros endereços seguem em alerta, como as localidades Pantanal, Vila Pernambuco e Vila Queiroz Galvão (Morro do Esquimó), no bairro de Juquehy, severamente atingido, que ainda vive um cenário de ameaça, com um crescimento desordenado de moradias e um sistema de drenagem comprometido.

“Se vier outra chuva daquela, como é que eu vou tirar meus filhos de dentro de casa? Na primeira vez, a gente teve a oportunidade, mas a gente não sabe se vai ter na segunda vez. Naquele dia, caiu tudo no meio da e a gente conseguiu correr pra cima, mas como é que vai ser agora se está tudo mexido?”, questiona a atingida, se referindo às obras da rua.
Como parte da reparação aos atingidos, em 2024, foram construídos conjuntos habitacionais nos bairros Baleia Verde e Maresias, para atender famílias afetadas pelas fortes chuvas. No total, 704 unidades foram entregues, sendo 518 em Baleia Verde e 186 em Maresias. Mas Greice não foi contemplada, assim como muitos atingidos que hoje vivem com auxílio-aluguel ou voltaram para áreas de risco. “O que eu queria era só ter a segurança dos meus filhos. Eu quero a minha segurança, do meu marido, pra gente conseguir dormir e acordar despreocupados. É o que me importa neste momento”, afirma a atingida.


Infelizmente, apesar do medo constante, muitas famílias, como a de Greice, ainda habitam em áreas de risco. Algumas, inclusive, em casas com sinalização de interdição definitiva pela Defesa Civil. As pessoas voltaram para essas áreas, porque não houve reurbanização ou realocação para locais mais seguros para todos, segundo o integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em São Paulo, Arthur Macfadem.
“Algumas casas em São Sebastião estão riscadas de vermelho pela Defesa Civil por conta do risco de desabamento, mas, se nada for feito para garantir moradia segura para as pessoas que ainda vivem nelas, no futuro, poderemos estar de luto de novo. O poder público tem a responsabilidade de impedir mortes evitáveis”, alerta o coordenador.
Ele explica que a demora para a efetivação de políticas habitacionais permite que a especulação avance, com construtoras tomando espaços que deveriam ser destinados à construção de casas populares para os moradores. “Isso provoca bolhas imobiliárias, que devido à crise climática que vivemos, irão resultar em mais tragédias, com um número grande de vítimas, por conta do déficit habitacional”, analisa Arthur.

Ele explica que, embora a Prefeitura ofereça o Auxílio Moradia para pessoas que ainda não conquistaram um lar definitivo, o valor de R$ 1.500 é, muitas vezes, insuficiente para arcar com o custo de aluguel em áreas seguras da cidade, especialmente considerando-se famílias grandes, com sete ou oito pessoas, como é o caso de muitos atingidos. “Além disso, o benefício é temporário. Então, os atingidos têm medo de sair de suas casas, mesmo que em área de risco, e depois que o auxílio for interrompido não terem para onde voltar se as construções forem demolidas”, explica Arthur.
IPT recomenda para Prefeitura ações de infraestrutura
Helton afirma que o novo mapeamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas deve ser usado nos processos de regularização fundiária. “Em fevereiro, depois de diversas prorrogações de prazo, a Prefeitura, enfim, apresentou um cronograma para a Vila Sahy, que prevê a regularização até julho de 2026. O cronograma, porém, deixou de fora as áreas de risco.” Diante disso, o juiz Vitor Hugo rejeitou o plano. “A existência de risco exige justamente prioridade da regularização de tais áreas, ao contrário do que foi proposto”, entende o magistrado. Passados mais quatro meses, a prefeitura ainda não apresentou um novo cronograma.
O risco de novos deslizamentos tem sido debatido desde a tragédia. Após o episódio, quando 611 milímetros de chuva caíram no município em apenas 12 horas, o município registrou escorregamentos de encostas que, conforme o geólogo do IPT, Marcelo Gramani, explicou à época, ocorreram mesmo sem a interferência da ocupação humana. Por isso, ele afirmou que os deslizamentos poderiam se repetir. “Vale lembrar que as enchentes na região são históricas e, em 2013, já tivemos a morte da Tainá Simões, de 11 anos, em uma enchente que alagou diversos bairros. Localidades como Areião, Pantanal, Lobo Guará, Tropicanga e outros sofrem com alagamentos e deslizamentos há muitos anos”, destaca Arthur.
Já em 2023, o Ministério Público entrou com uma ação civil pública contra o Governo do Estado de São Paulo e a Prefeitura de São Sebastião, em que cobrava a atualização do mapeamento das áreas de risco da Barra do Sahy. O MP já havia alertado sobre os riscos na região em 2020, classificando a ocupação da encosta como uma “tragédia anunciada”. O órgão cobrou ações para evitar novas tragédias, incluindo a regularização fundiária e a remoção de moradores de áreas de risco.
Atingidos em área de risco relatam angústia durante espera por moradia definitiva
São muitos os atingidos que vivem em estado de alerta e relatam problemas de ansiedade, dificuldades para dormir, pavor durante as temporadas de chuva e falta de informações por parte da prefeitura sobre os seus direitos, conforme relata Arthur. Conheça a história de alguns dos moradores que aguardam suas casas definitivas para poderem voltar a dormir com tranquilidade.
“Já passamos por todas as cores de interdição da Defesa Civil. Meu desespero é por causa das crianças”

Jamile Alves conta que a casa dela, que está ao lado de um muro de contenção, na Rua Tropicanga, está com rachaduras e infiltração nas paredes, por conta das obras da Prefeitura. “Aqui já passou por todas as cores de interdição da Defesa Civil e agora está vazando água, tanto pela laje, como pela lateral da casa. E não dá pra fazer obras porque está tudo interditado”, explica.
Ela afirma que seu maior medo é deixar os filhos em casa para ir trabalhar, por conta do receio de uma nova tragédia. “Tem um adolescente e três crianças dentro de casa e não posso trabalhar em paz quando falam que vai chover. É sempre ligando para os irmãos, para os parentes, para pedir pra tomar conta deles. É isso, é desespero por causa deles. Aí já peço pro meu patrão. É proibido usar celular também no serviço, mas já peço: – vou ligar pra poder alguém olhar as crianças por causa da chuva. Eu entro em desespero porque pode acontecer alguma coisa e a gente não poder ajudar, porque se tem um adulto em casa é mais fácil de correr”.
“Até hoje não recebemos o aluguel social. Disseram que se esse morro desabar, morrem 600 pessoas”
Josimar Santos afirma que, até hoje, sua casa enche de água. “Eu perdi eletrodomésticos, a televisão, a geladeira, o micro-ondas e até o carro. E tudo isso ficou por isso mesmo. A Prefeitura disse que viria nos ajudar, a dar pelo menos um suporte, mas isso não aconteceu”, denuncia.
Segundo ele, profissionais da Defesa Civil afirmaram que a situação da localidade é de alto risco. “Eles disseram que, embora não pudessem dar um parecer definitivo, havia uma rachadura de fora a fora. A obra de contenção feita aqui foi apenas para enganar, para dar a impressão de segurança. Mas não estamos tranquilos aqui.
“A Defesa Civil e o IPT nos alertaram que, se o barranco desmoronar, pode resultar na morte de 600 a 800 pessoas em uma área de 50 metros de profundidade. E, nesse caso, os moradores chorariam seus mortos sem poder retirá-los para enterrar, porque estariam soterrados. É isso, né? O próprio órgão do Estado nos condena, mas não oferece alternativa. Ficamos um tempo na pousada e, depois, fomos para o CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo, onde nos disseram que iriam nos tirar daqui e que nos realocariam em casas. Mas isso não aconteceu. Depois disso, nos colocaram no auxílio-aluguel, mas esse auxílio nunca chegou até nós. Apenas fomos lá assinar um papel. Muitas pessoas sabem que aqui é muito difícil, porque os proprietários não querem alugar para a prefeitura. Além disso, o aluguel é muito caro, e aqueles que alugam para a prefeitura exigem três meses de adiantamento, o que a prefeitura nunca faz. Então, ficamos nessa situação”.
“Essa Injustiça vai fazer três anos em 2025”
Verônica Santos compartilha a angustiante realidade que sua família enfrenta após a tragédia, destacando a falta de apoio e a promessa não cumprida de novas moradias.
“A gente está enfrentando uma situação muito difícil. Tanta gente já conseguiu casa e nós permanecemos nessa situação. Fomos os únicos que permanecemos nessa situação. Inicialmente, fomos pra uma pousada, mas depois de um tempo, fomos retirados de lá e orientados a voltar para casa, mesmo estando condenada. Forçaram a gente a assinar documentos que prometiam novas moradias, mas essa promessa nunca se concretizou”.
Atualmente, estou no auxílio aluguel, mas a minha casa mesmo foi demolida e a situação permanece a mesma após quase três anos. E o medo é de acabar o auxílio aluguel, porque ele é temporário. Minhas irmãs, que estão com laudo vermelho da Defesa Civil, também não receberam casa. Então, acabando esse auxílio, vou morar onde, se a minha casa desceu morro abaixo?”.
