Tragédia em São Sebastião escancara desigualdades sociais e de gênero em meio à crise climática

Com o aumento dos eventos extremos, mulheres – especialmente mães solo – enfrentam uma sobrecarga invisível e uma luta desigual por moradia, segurança e dignidade

Rosana Olga, atingida de São Sebastião, segue sem perspectiva de moradia segura após a tragédia. Foto: Arthur Macfadem / MAB

Em fevereiro de 2023, o litoral norte de São Paulo foi atingido por uma das maiores tragédias climáticas já registradas no país. Chuvas intensas provocaram alagamentos, deslizamentos de terra e deixaram 64 mortos em São Sebastião. Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o volume de chuva foi o maior já registrado no Brasil em um intervalo de 24 horas.

Mais do que um desastre natural, a tragédia revelou as marcas profundas da desigualdade social, do racismo ambiental e da ausência de políticas públicas eficazes para prevenir e mitigar riscos. A maior parte das vítimas vivia em áreas de risco, como encostas e margens de rios, onde a presença do Estado é historicamente ausente ou insuficiente. Mesmo após mais de um ano, muitos moradores ainda aguardam uma solução definitiva para sair dessas áreas perigosas.

Casos como o de Rosana Olga, moradora de Juquehy, revelam como as mudanças climáticas impactam de forma desproporcional as mulheres, principalmente aquelas que são mães solo. “Minha casa encheu de água, perdi tudo: geladeira, fogão, máquina de lavar”, conta. Desde então, vive de aluguel social, sem saber até quando. “Minha maior preocupação hoje é essa: o fim do auxílio e não ter pra onde ir.”

A crise climática, como apontam especialistas, é também uma crise de gênero, de raça e de classe. Mulheres – especialmente negras, indígenas, ribeirinhas e periféricas – estão na linha de frente da sobrevivência, muitas vezes sem apoio do Estado, arcando com múltiplas responsabilidades: cuidar dos filhos, reconstruir a vida e manter o sustento do lar.

Sara Regina Cordeiro, atingida da Villa Sahy. Foto: Arthur Macfadem / MAB

Atingida da Villa Sahy, Sara destaca que, além das perdas materiais, as mulheres enfrentam uma pressão emocional constante.

Somos mães, temos que passar segurança para os filhos, mas ao mesmo tempo sabemos das dificuldades, dos medos… das chuvas fortes, das enchentes.” Ela enfatiza que a expectativa de força atribuída às mulheres ignora sua vulnerabilidade real: “Por mais que a gente seja forte, a mulher precisa de ajuda também. Ajuda psicológica, apoio. Porque a gente não é a Mulher-Maravilha. Somos de carne e osso.”

Mesmo sendo frequentemente o alicerce das famílias e comunidades, essas mulheres recebem pouco ou nenhum suporte institucional. A desigualdade se manifesta também no acesso à moradia, saúde, educação e emprego. “A mulherada precisa de moradia digna, urgente. Precisam olhar pra isso. Casas populares, apoio para quem está sozinha, sem suporte masculino”, afirma Beatriz.

A realidade dessas mulheres é respaldada por dados. Um estudo da Climate Trends mostra que pessoas que vivem em áreas de baixa renda têm sete vezes mais chances de morrer em eventos climáticos extremos do que moradores de regiões mais ricas. E no Brasil, essa estatística tem cor e CEP: “Falar sobre racismo ambiental é falar sobre a exposição desproporcional de pessoas negras e indígenas a situações de risco e poluição”, explica Fernanda Pinheiro, geógrafa e pesquisadora.

Pessoas em região de baixa renda, têm sete vezes mais chances de morrer por situações impostas pelas mudanças climáticas, do que populações em região de alta renda. Foto: divulgação


Enquanto bairros de veraneio ocupam terrenos valorizados e protegidos, comunidades tradicionais, como a dos Caiçaras, são empurradas para áreas instáveis. “As pessoas com salários baixos não escolhem onde morar. Elas vão pra onde o dinheiro permite”, completa Fernanda.

Nesse cenário, o conceito de justiça climática ganha força, propondo que a crise ambiental seja tratada também como uma crise social, exigindo políticas públicas que levem em conta os diferentes níveis de vulnerabilidade. Organizações como o Instituto Alziras, trabalham para incluir a perspectiva de gênero nesse debate e fortalecer a presença de mulheres na política e na gestão de riscos.

A importância do apoio comunitário e a organização popular

Durante a tragédia em São Sebastião, muitas mulheres como Rosana enfrentaram a perda de suas casas e a responsabilidade de cuidar da família apenas com ajuda da comunidade. “Tive ajuda de três vizinhos que me deram um lugar pra ficar por um tempo. Foram pessoas muito boas, que me trataram com carinho e cuidaram bem da minha filha.”

O apoio comunitário foi essencial diante da omissão do poder público, além do acolhimento de movimentos populares, como no caso do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que teve papel crucial nesse cenário, organizando ações de solidariedade, apoio jurídico, psicológico e distribuição de itens de primeira necessidade. O movimento também defende a participação ativa das mulheres nos processos de reconstrução e planejamento das cidades e segue atuando na articulação política para garantir os direitos dos atingidos.

Integrante da coordenação do MAB, Arthur Macfadem explica que a luta coletiva tem sido muito importante para pressionar o poder público a garantir condições de vida mais dignas para os atingidos e estruturar políticas de moradia segura para todos, a fim de evitar que mais vidas se percam. Ainda assim, ele avalia que falta participação dos moradores nos processos de decisão e investimentos mais expressivos para proteger as pessoas mais vulneráveis aos extremos climáticos.

No entanto, apesar da urgência da situação, o investimento público segue em queda. Em 2023, o orçamento federal para gestão de riscos e desastres foi o menor em 14 anos. E São Sebastião, mesmo duramente atingida, não recebe recursos da Defesa Civil estadual para prevenção desde 2013.

A crise climática é real, previsível e crescente. Mas seus impactos não são naturais, são consequências diretas de decisões políticas que desconsideram a vida das populações mais vulneráveis. Como alerta o Instituto Alziras: sem mulheres na liderança e sem políticas que enfrentem as desigualdades de gênero e raça, não haverá justiça climática possível.

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