A Luta dos atingidos de São Sebastião (SP) pelo Acesso à Justiça: Uma Entrevista com a pesquisadora Flávia Braga

Coordenadora do projeto “Clínica de Acesso à Justiça para Atingidos por Desastres Climáticos” fala da contribuição da iniciativa aos atingidos pelo desastre climático.

Seminário “Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo”. Foto: Gabrielle Sodré / MAB

Flávia Braga Vieira é socióloga, professora da UFRRJ e coordenadora do projeto Clínica de Acesso à Justiça para Atingidos por Desastres Climáticos, desenvolvido em parceria com a universidade, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Secretaria de Acesso à Justiça (SAJU), do Ministério da Justiça, com o objetivo de fortalecer a luta dos moradores de São Sebastião (SP), que foram atingidos por uma das maiores tragédias climáticas do Brasil, em 2023. Passados dois anos desse evento, eles ainda enfrentam as consequências do abandono do poder público, vivendo em condições precárias. Uma grande quantidade de pessoas segue morando em áreas suscetíveis a deslizamentos e inundações, além de enfrentar o agravamento da falta de saneamento básico nos bairros periféricos.

Diante desse cenário, Flávia, que tem vasta experiência em temas como globalização, movimentos sociais e políticas públicas, discute as consequências da crise climática e o papel da educação e da militância na defesa dos direitos das populações mais vulneráveis.

Segundo ela, em muitos casos, as famílias mais afetadas são aquelas que não têm acesso a crédito ou recursos para se recuperar sozinhas dos prejuízos causados por eventos extremos. Por isso, a mobilização coletiva se torna essencial na busca por justiça e no enfrentamento das desigualdades sociais agravadas pelas mudanças climáticas. A luta também envolve a busca por equidade, sustentabilidade, direito à vida e à saúde. Além de medidas para mitigar os impactos climáticos sobre os grupos mais expostos e vulnerabilizados.

Encontro de mulheres atingidas de São Sebastião (SP). Foto: Arthur Macfadem / MAB

Como surgiu o projeto “Clínica de Acesso à Justiça para Atingidos por Desastres Climáticos” e qual é seu principal objetivo?

O projeto foi idealizado para ajudar as populações atingidas pelo desastre climático em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, ocorrido em fevereiro de 2023. Ele visa facilitar o acesso à justiça e garantir que as demandas dessas comunidades sejam ouvidas, principalmente por meio do levantamento de danos e necessidades. Além disso, o projeto oferece um curso de formação online, com 18 aulas ao longo de 18 meses, que já conta com a participação de atingidos de diversas partes do Brasil. O objetivo é proporcionar conhecimento sobre os direitos das populações afetadas por desastres climáticos, além de revisar jurisprudências e normativas sobre o tema, tanto no Brasil quanto internacionalmente.

Como o projeto tem contribuído para o fortalecimento da organização popular e o acesso aos direitos?

A participação das organizações da sociedade civil, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), é fundamental para o sucesso do projeto. Eles já têm uma longa trajetória de organização e mobilização das populações atingidas, principalmente por barragens. No caso dos desastres climáticos, é imprescindível que essas populações se organizem para garantir que seus direitos sejam reconhecidos e efetivamente cumpridos. O movimento social tem sido crucial para a criação de novos direitos e para a pressão sobre o poder público, como, por exemplo, a recente conquista da Política Nacional dos Atingidos por Barragens (PNAB).

Como o modelo neoliberal e a crise climática estão interligados e impactam as populações mais vulneráveis?

O modelo econômico atual, baseado no capitalismo, é intensamente explorador dos recursos naturais, o que contribui diretamente para as mudanças climáticas. A produção de energia, a extração de matérias-primas e o aumento da produção de mercadorias são fatores que aceleram a destruição ambiental. O capitalismo também gera desigualdade, e são as populações mais vulneráveis aquelas que vivem em áreas de risco, que sofrem mais com os desastres. Essas pessoas, muitas vezes, não têm recursos para se recuperar após um desastre, o que perpetua a pobreza e a exclusão social. O estado tem um papel importante aqui, fornecendo apoio às populações atingidas, mas a desigualdade estrutural continua a agravar os efeitos dos desastres.

Quais são as falhas nas políticas públicas em relação aos desastres climáticos e como elas impactam as populações vulneráveis?

Embora existam políticas de assistência social e moradia, elas são insuficientes, tanto em quantidade quanto em qualidade, para lidar com a magnitude dos desastres climáticos. A cada desastre, o governo precisa criar novas medidas emergenciais, como aluguel social ou auxílio emergencial, mas não existe um plano preventivo claro. O sistema de defesa civil, criado após o desastre na região serrana do Rio de Janeiro, é um exemplo, mas ele ainda não cobre adequadamente a reconstrução de longo prazo das vidas das populações afetadas. O Brasil precisa de políticas públicas mais estruturadas e permanentes, que abordem tanto a prevenção quanto a recuperação de forma eficiente.

Qual a importância da atuação do MAB no território?

A partir do momento em que a comunidade local se organiza dentro do MAB, percebe-se que esse processo tem dado visibilidade às demandas da região. Esse projeto é financiado pela Secretaria de Acesso à Justiça (SAJU), do Ministério da Justiça, o que de alguma forma facilita a interlocução com o Poder Público. O MAB também tem estabelecido diálogos com a Defensoria Pública de São Paulo, o que é crucial para fortalecer essa relação. No entanto, o que considero mais importante é a articulação entre as comunidades afetadas, que antes não estavam tão conectadas.

E quais os efeitos da implementação do projeto em São Sebastião?

O nosso projeto, por exemplo, é um instrumento que permite que as pessoas se encontrem e compartilhem experiências. Um exemplo disso é o curso de extensão que estamos oferecendo. Embora seja um curso com participantes de várias partes do Brasil, a maior parte das vagas foi destinada aos atingidos de São Sebastião. No entanto, também temos a participação de pessoas de outras regiões, o que cria uma oportunidade para troca de experiências. Os participantes não só assistem às aulas com os professores, mas também têm a chance de fazer perguntas e compartilhar suas realidades locais. Essa troca de vivências é rica e pode gerar desdobramentos futuros. Acredito que, com o tempo, essas populações de diferentes regiões do país podem se articular mais intensamente na luta comum, mas, por enquanto, ainda não podemos afirmar que esse é um impacto direto do projeto. No entanto, já estamos vendo indícios de que essa articulação tem grande potencial para se expandir.

Flávia Braga durante encontro sobre extremos climáticos em Petrópolis (RJ). Para a pesquisadora, a troca de experiências entre atingidos de diferentes territórios pode ser muito positiva para fortalecer a luta por justiça. Foto: Alessandra de Carvalho – ICHS / UFRRJ

O que seria uma reparação justa para as vítimas de desastres climáticos?

Uma reparação justa precisa ser discutida com a sociedade e deve ser baseada em um critério de prioridade para os mais vulneráveis. O estado tem a responsabilidade de cobrir a reconstrução das vidas destruídas pelos desastres, mas não pode oferecer os mesmos recursos a todos, especialmente quando há grandes desigualdades de renda. Em muitos casos, as famílias mais atingidas são as que não têm acesso a crédito ou recursos para se recuperar sozinhas. A reparação deve incluir tanto uma compensação financeira justa quanto o fornecimento de moradia, saúde e serviços básicos, considerando as especificidades de cada grupo social.

Como a sociedade pode se organizar para prevenir desastres climáticos e garantir a justiça para as populações atingidas?

A sociedade precisa estar preparada para lidar com os desastres de forma preventiva. Isso inclui o mapeamento de áreas de risco, o treinamento da população sobre o que fazer em caso de desastre e a criação de políticas de relocação para áreas mais seguras. Além disso, é fundamental que a sociedade se una para exigir mudanças nas políticas públicas e que as populações afetadas por desastres tenham voz ativa na criação dessas políticas. A universidade, com seu conhecimento técnico, tem um papel importante nesse processo, mas é a organização popular que garante a implementação e a luta pelos direitos.

O que o futuro reserva em termos de políticas públicas e de conscientização sobre os desastres climáticos?

É fundamental que o Brasil adote uma política nacional que aborde todos os momentos do desastre: prevenção, emergência e reconstrução. Isso inclui uma normativa clara sobre os direitos das vítimas e a responsabilidade do estado na reparação e na reconstrução das vidas destruídas. Precisamos de um plano de ação que seja implementado de forma sistemática e que envolva a sociedade como um todo. Além disso, é urgente que a sociedade, em nível local, nacional e até global, se una para enfrentar a crise climática, garantindo que as condições para a reprodução da vida humana e de outras espécies sejam preservadas.

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