Da Amazônia ao RS, entenda porque a crise climática nos atinge
Segundo o Centro de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), o Brasil vive a pior seca da sua história recente
Publicado 05/09/2024 - Atualizado 06/09/2024
Enquanto Maurício da Silva, 28 anos, morador da comunidade de São Sebastião, em Porto Velho, luta pela instalação de poços artesianos que possam garantir o acesso mínimo à água, que está minguando no Rio Madeira; Marisa Wassem sofre em Arroio do Meio (RS) com a espera da reconstrução da sua casa, destruída pela força das águas que atingiram o Vale do Taquari no último mês de maio. Ambos passam por situações de vulnerabilidade dado o aumento das mudanças climáticas, que cada vez mais se intensificam e afetam, especialmente as populações periféricas das diferentes regiões.
Na Amazônia, dezenas de municípios já decretaram estado de emergência por conta dos rios em níveis baixos históricos. Comunidades inteiras isoladas e com difícil acesso a alimentos e água potável. O tempo seco contribuiu, ainda, para a proliferação das queimadas, que destroem florestas e plantações e poluem o ar. Os extremos, porém, não estão restritos à região. Entre o Norte e o Sul, todas as regiões sofrem em algum nível com o calor desproporcional, tempestades, queimadas ou secas severas.
Segundo o Centro de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), o Brasil vive a pior seca da sua história recente. Paralelo a isso, há 3 meses o RS registrou a pior enchente da história do Estado.
De acordo com os dados recentes cerca de 200 municípios continuam em condição de seca extrema, com destaque para São Paulo (82 municípios), Minas Gerais (52), Goiás (12), Mato Grosso do Sul (8) e Mato Grosso. Conforme aponta o Monitor de Secas, o Amazonas lidera a área total com seca de julho, seguido por Pará, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia. No total, entre junho e julho, a área com o fenômeno aumentou de 5,96 milhões para 7,04 milhões de km², o equivalente a 83% do território brasileiro. O Rio Grande do Sul se mantém livre de seca há dez meses.
Eventos climáticos extremos: O novo “normal” do Brasil
Para a pesquisadora Nina Moura, a relação entre as inundações devastadoras no Rio Grande do Sul e o desmatamento na Amazônia faz sentido, tendo em vista que todas as dinâmicas atmosféricas estão conectadas. Professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a especialista explica como os desastres do Sul, as queimadas do Sudeste e as secas do Norte do país estão interligadas.
A geóloga explica que estamos sob as variações climáticas do El Niño, que nada mais é do que o aquecimento das águas. Esse fenômeno ocorre normalmente duas vezes a cada 10 anos, tendo geralmente uma duração de 18 meses. “Porém, veja bem, se quando a água aquece mais rápido ela evapora, mais carregadas as nuvens ficam.” Então, segundo Nina, o El Niño teve suas características intensificadas pelos gases de efeito estufa. Isso somado aos eventos climáticos naturais, causou o resultado que vimos nos últimos meses.
“É tudo relacionado. Temos o El Niño e ao mesmo tempo uma frente fria, que normalmente vem do Sul em direção ao Norte, encontrou uma pressão extremamente quente no Sudeste e não teve força de avançar, ficando estabilizada no Rio Grande do Sul. Então, tudo que tinha que chover no Sudeste ou no Nordeste do país ficou barrado por uma grande massa de ar quente. Ou seja, a precipitação que deveria ter sido distribuída por outras partes do país se concentrou nessa região aqui do Rio Grande do Sul.”
O que explica porque os brasileiros têm vivido os eventos naturais de maneira tão violenta. A professora ainda alerta que essa massa quente de ar do Sudeste, que impediu o avanço da frente fria, é um exemplo dessa relação entre o aquecimento global no clima e a intensificação de desastres naturais. “O sistema atmosférico não cria uma situação individual para cada ponto, elas estão articuladas.”
Por isso, o desmatamento compromete a capacidade das florestas de regular o clima em todo o continente e não só na Amazônia. A consequência é a intensificação de eventos extremos, como as chuvas intensas que se transformaram em tempestade e, posteriormente, em enchentes, tirando a vida de centenas de pessoas.
Para Luciana Gatti, cientista de mudanças climáticas e coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), existem grandes variações climáticas. Por isso, sua equipe de pesquisa se concentrou, nos últimos anos, em analisar os fatores que determinam essa diferença. “Analisamos o que aconteceu nos últimos 40 anos na Amazônia e calculamos quanto cada uma das áreas estava desmatada. E aí a gente viu uma correlação muito estreita entre mais desmatamento e perda de chuva e aumento de temperatura, principalmente durante os meses de agosto, setembro e outubro”, explica Luciana.
Esses resultados, segundo a pesquisadora, são a prova da conexão entre vegetação e controle do clima.
“O desmatamento reduz a chuva. Isso é meio óbvio, porque a árvore joga vapor de água na atmosfera. A floresta joga pra atmosfera uma quantidade de água parecida com a que o rio Amazonas joga no oceano todo dia. É uma quantidade imensa de água. Você consegue imaginar o rio Amazonas desaguando pra cima?”
Para além da redução da chuva, Lúcia garante que o desmatamento é o grande responsável pelo aumento da temperatura na região. “Bom, a água para sair do estado líquido (o estado em que ela está no solo) e se transformar em vapor na atmosfera, ou seja, para mudar de estado físico, ela precisa de energia na forma de calor. Por exemplo: para ferver uma água, você precisa botar fogo né, tem que dar calor para ela. Então, quando a água está fazendo esse processo, ela está fazendo a temperatura esfriar, porque a água que está virando vapor, está consumindo energia na forma do calor na Amazônia”, diz Luciana.
“Quando diminui a quantidade de árvores na floresta, consequentemente esse processo é desacelerado e a temperatura sobe. Então, assim, o Sudeste da Amazônia, em especial, virou uma fonte de carbono, porque lá as temperaturas estão extremamente altas e tem um déficit de vapor de água muito importante concentrado em cima dessa região”, explica.
Para Luciana, as condições de vida no país dependem de uma transformação significativa no modelo econômico e nas prioridades dos investimentos públicos.
“A gente precisava declarar moratória da soja e priorizar projetos de restauração florestal lá, mas o governo do estado do Mato Grosso está fazendo o oposto. Está entregando pra desmatamento, pra mineração, pra soja. Os caras só querem saber de dinheiro. Só que o próprio agronegócio vai quebrar, porque não existe agricultura sem água, sem chuva”, destaca.
Qual é o caminho?
Luciana aproveita para apontar um caminho seguro a ser seguido no combate a futuros desastres. Segundo ela, mais do que se adaptar às mudanças climáticas, é urgente combatê-las, com medidas imediatas de conservação ambiental e reflorestamento, tanto na Amazônia como nas encostas ribeirinhas do Rio Grande do Sul. Só assim é possível proteger não apenas a sociobiodiversidade na floresta, mas também moradores de regiões mais vulneráveis.
A cientista também defendeu a ideia de que o agronegócio, que é o setor que se desenvolve com o desmatamento florestal, deveria indenizar o Brasil. “Na conta, só entra o tanto de dinheiro lá da balança comercial. Se os caras colocassem na conta quanto que eles não pagam imposto, o quanto pegam de empréstimo a juros baixíssimos, o quanto custa para o Estado brasileiro reparar os estragos dos eventos extremos, das secas e das enchentes, a gente veria que esse agro dá muito prejuízo pro Brasil. Fora as mortes, que não temos como precificar o que elas significam pra nossa sociedade. Então, por que insistimos em investir tantos recursos em monocultura?”, questiona.
Para Elisa, é esse tipo de questionamento que o MAB vai levar para as ruas nessa quinta-feira (5). “Queremos que o Poder Público, em suas diversas instâncias, olhe para a demanda da população e invista em projetos que protejam a vida dos atingidos”, afirma.
O que pensam os atingidos climáticos?
No dia 5 de setembro, que marca o Dia da Amazônia, atingidos de todo o Brasil vão às ruas para reivindicar a proteção de direitos fundamentais da população diante dos impactos causados pelo atual modelo econômico e o desmatamento em diferentes territórios do país: De Rondônia (RO) a Porto Alegre (POA).
Organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a jornada de lutas tem como lema “Salve a Amazônia! Somos todos atingidos!” para denunciar os impactos causados pela devastação da maior floresta tropical do mundo.
“O drama se repete a cada ano, mas agora parece que a situação está pior. Os pescadores já desistiram de tentar pescar. Na minha comunidade, os poços têm cada vez menos água e, em breve, o transporte já fica arriscado, porque o rio está com um pouco mais de um metro de profundidade”, relata Maurício, um dos atingidos que irá participar dos atos do MAB em Porto Velho (RO).
Segundo Elisa Estronioli, integrante da coordenação do MAB, a nova realidade a que os atingidos estão submetidos com a crise climática não só agrava a situação de insegurança próximo às estruturas de barragens, mas também produz atingidos pela expansão dos projetos relacionados à transição energética e piora as condições de vida da classe trabalhadora diante das catástrofes ambientais.
“O modelo econômico adotado no Brasil tem, ao longo dos anos, provocado uma enorme concentração de riqueza e ampliado as desigualdades socioespaciais, de classe, raciais e de gênero. As populações atingidas por barragens, por grandes obras em geral, historicamente são vítimas desse processo. Com as mudanças climáticas, essas populações são ‘duplamente atingidas’, pois estão em maior insegurança devido a riscos de rompimentos, deslizamentos, enchentes e, também, sofrendo o drama das secas extremas”, afirma Elisa.
A dirigente reforça que as tragédias recorrentes em todo o território nacional demonstram que é urgente uma solução para a manutenção da vida dos atingidos, através de medidas de adaptação e enfrentamento das mudanças climáticas, mas também de políticas de reparação para as populações afetadas, com participação popular. Por isso, entre as ações previstas para o dia 5 de setembro estão atos, ocupações e assembleias públicas para se discutir diferentes tragédias em curso no Brasil que mudam radicalmente a vida de milhões de brasileiros.
Atingida pela enchente histórica de maio, no Rio Grande do Sul, Marisa Wassen, citada no início da reportagem, também está motivada para ir às ruas no dia 5 de setembro. No último mês de junho ela passou por uma experiência complicada. Marisa viu nascer seu segundo filho sem casa, móveis, roupas ou enxoval, pois tudo que ela havia adquirido para receber sua criança foi levado pela lama. Há 34 anos, ela mora em Arroio do Meio (RS), no Vale do Taquari, e nunca havia presenciado uma inundação tão grave. Hoje, ela diz que vai lutar para construir um futuro diferente para a filha.