Profissionais de saúde se esforçam para lidar com quadros psicológicos e manter esperança viva nos abrigos do Rio Grande do Sul
Equipes de saúde também cuidam de ferimentos e doenças crônicas nos abrigos e tentam manter cobertura vacinal contra tétano entre atingidos
Publicado 18/06/2024 - Atualizado 18/06/2024
De acordo com Daniela Todeschini, médica da família, que está coordenando o atendimento dos atingidos pelas enchentes em Arroio do Meio (RS), uma das grandes preocupações dos profissionais de saúde nesse momento é cuidar do quadro psicológico dos moradores, para que eles não percam a esperança de reconstruir suas vidas.
O diagnóstico mais comum dos atingidos pelas cheias do estado envolve transtornos como ansiedade, depressão e síndrome de burnout. Os dados são dos psiquiatras do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A instituição está investigando as consequências das enchentes na saúde mental dos gaúchos de acordo com a faixa econômica dos moradores.
Por conta da grande quantidade de pessoas atingidas pela tragédia, os danos psicológicos da população local já se tornaram uma preocupação de saúde pública. Ao todo, a cheia afetou 2,4 milhões de pessoas em todo o estado, com impactos em 478 dos 497 municípios gaúchos.
Os resultados preliminares do levantamento da UFRGS, iniciado em meados de maio na capital, mostram que a ansiedade aflige a 100% dos atingidos com renda familiar abaixo de R$ 1,5 mil e a 86,7% de quem tem renda familiar acima dos R$ 10 mil. A depressão atinge a 71% das pessoas do estrato com menor renda e a metade (35,9%) daqueles com maior renda. A expectativa dos organizadores é ter informações para cuidar da saúde mental da população impactada e fornecer subsídios para a política de saúde pública.
Segundo Miriam Alves, presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, ressalta que as perdas ocasionadas pelos extremos climáticos incluíram, em muitos casos, além de familiares, amigos e animais, espaços como residências, centos comunitários e culturais, escolas, hospitais, igrejas e terreiros. Tudo isso pode causar impactos a curto, médio e longo prazo para o bem-estar mental, conforme explica a especialista.
Esses danos se somam a problemas de saúde relacionados às doenças de veiculação hídrica, como leptospirose e hepatite, além de fraturas e infecções como tétano. O número de mortes por leptospirose relacionadas às enchentes subiu para 19, os casos passaram de 300 e já são 4 óbitos relacionados à doença, segundo novo boletim da Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul divulgado ontem, 17. Uma projeção do Ministério da Saúde aponta que os episódios da infecção causada pelo contato com água contaminada por urina de ratos podem chegar a 1.600.
No Vale do Taquari, profissionais de saúde se preocupam com efeitos de trauma coletivo
Daniela explica que todos esses quadros causados pela tragédia precisam ser solucionados pelas equipes de saúde do estado paralelamente às demandas rotineiras que os profissionais tentam atender em uma situação de grande complexidade, em meio a ginásios lotados ou espaços como escolas e até um seminário que estão funcionando como abrigos, no caso de Arrio do Meio.
“Eu trabalhava no Posto de Saúde Navegantes, que é a área mais atingida do município. Então, a gente atua nos abrigos com as emergências, mas as demandas anteriores de saúde se mantêm. Você tem um hipertenso que está lá, tem um paciente que tinha outros problemas. E agora tem também a falta de local para morar, tem essa incerteza sobre o futuro. Entende? Essa foi a terceira grande enchente na região em um ano. Então, as pessoas estão psicologicamente abaladas, porque não sabem o que vai ser daqui pra frente, não se sabem quem vai conseguir receber as casas que vão ficar prontas primeiro porque não tem como se fazer tudo ao mesmo tempo, né?”, pontua a profissional.
A médica conta que atendeu uma paciente de 60 anos na última semana que relatou grande aflição. “Ela estava chorando, super angustiada de estar numa comunidade, num abrigo, onde tem muito barulho e sem perspectivas, porque a gente não sabe quanto tempo vai durar. É incerto, né? Quanto tempo mais ali?”, questiona Daniela.
Organizados no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), alguns dos atingidos de Arroio do Meio que sofriam da mesma angústia contam que o trabalho solidário em parceria com outros moradores nas cozinhas comunitárias e abrigos ainda é o que mantém a mente saudável até que consigam ter novas perspectivas de vida. “A gente tenta oferecer uma comida quentinha e gostosa para os vizinhos, que seja não só um alimento, mas um afeto para esse momento crítico”, conta a moradora Luana Paloma, que decidiu se dedicar ao trabalho solidário por sentir na pele o que é ter que resistir e retomar a vida fora de casa. “O nosso trabalho é focado nos lugares que não estão sendo atendidos, nas regiões periféricas e nas áreas isoladas”, completa.
Formada em Gestão em Saúde Pública, Ana Paula Irassochio, técnica de enfermagem, está preocupada com relação ao futuro dos pacientes. Ao lado de Daniela, a profissional está à frente dos atendimentos dos desabrigados em Arroio do Meio. Ela explica que o trabalho inclui consultas in loco, realização de curativos nos casos de lesões e fraturas e atendimento psicológico com o apoio da Casa Branca (espécie de Centro de Apoio Psicossocial que atua no município).
“Também houve uma intensificação da aplicação de vacinas, como a antitetânica, nos abrigos, devido aos ferimentos por pregos, cortes etc. E a gente também fortaleceu a vacinação contra a gripe (que previne a influenza), porque – nesse momento – a única maneira de fazer a cobertura é ir atrás dessas pessoas”, relata Ana.
A profissional demonstra o receio sobre o trauma coletivo que a situação pós tragédia pode causar na vida dos atingidos, especialmente das crianças. “O barulho da chuva, por exemplo, geralmente trazia uma sensação de paz, de sossego de tranquilidade, até um momento de relaxamento. Hoje, o barulho da chuva nos traz preocupações, porque fomos atingidos aqui durante nove meses, severamente pelas águas”, explica.
Arroio do Meio hoje tem um hospital que referência em psiquiatria, mas Ana percebe a necessidade um protocolo específico para as famílias que precisaram retomar suas vidas repetidas vezes.
“A gente está fazendo um trabalho psicológico cuidadoso para que as pessoas não sejam tomadas daqui um tempo por um desespero, por uma desesperança, de achar que a vida não vale a pena ser reconstruída, né? Então, a gente tenta trabalhar essa questão, inclusive no atendimento das crianças, dos jovens. Estamos atuando e as escolas também para que eles percebam que, sim, vale a pena trabalhar, vale a pena construir, vale a pena lutar por uma vida melhor e que tudo passa. E essa situação de agora vai demorar um tempo sim, mas isso vai passar”, avalia.