Rede de universidades apresenta quarto relatório anual do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática
Publicado 24/08/2023 - Atualizado 24/08/2023
Prestes a completar oito anos, o crime da Samarco/Vale-BHP no Rio Doce continua com efeitos severos sobre a natureza e as populações atingidas. O que é percebido no dia a dia de quem convive com os impacto, principalmente nas comunidades ribeirinhas e costeiras ao longo da calha mineira e capixaba do rio e do litoral do Espírito Santo, é demonstrado cientificamente no 4º Relatório Anual do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática da Área Ambiental I – Porção Capixaba do Rio Doce e Região Marinha e Costeira Adjacente, produzido pela Fundação Espírito-Santense de Tecnologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Fest/Ufes), a partir de estudos e contribuições de cerca de 500 pesquisadores de mais de trinta instituições, principalmente universidades federais de vários estados brasileiros.
O documento é apresentado em um seminário de dois dias, nesta quinta e sexta-feira (17 e 18) na Ufes, reunindo também membros da Câmara Técnica de Biodiversidade (CTBio) e outras instâncias do Comitê Interfederativo (CIF), e ainda outros pesquisadores e especialistas envolvidos no PMBA, além da Fundação Renova, que transmite o seminário ao vivo em seu canal no YouTube.
Membro da CTBio, o analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) Joca Thomé explica que um dos desdobramentos práticos do relatório e das discussões fomentadas no seminário, é o estabelecimento de novas deliberações e sentenças por parte do CIF e da Justiça, além de notas técnicas e normativas dos órgãos ambientais e ações do Ministério Público, com vistas a adequar as medidas de reparação e compensação em curso, como vem ocorrendo desde que o PMBA passou a publicar seus dados e conclusões.
Um exemplo é a recuperação dos ambientes aquáticos, como ela pode acontecer de forma menos invasiva e com mais resultados positivos, sabendo que cada ambiente tem características próprias. “No rio está demonstrada a contaminação da biota em níveis preocupantes, com crescimento explosivo das espécies invasores. Será necessária uma intervenção forte para tentar recuperar um pouco, no sentido de capturar exóticas, fechar algumas áreas, introduzir nativas. No mar, tem que avaliar por tipo de pescaria. O camarão, que tem ciclo de vida curto, tem se recuperado mais rapidamente que outras espécies. Na APA [Área de Proteção Ambiental] Costa das Algas houve transformação muito grande no tipo de algas que ocupam o fundo, diminuiu o número de espécies. Na Foz do Rio houve transformações muito grandes: a área lamosa aumentou muito. Os demais manguezais, socialmente tão importantes, estão muito contaminados. O impacto social é tão grande ou maior que o ambiental”, pontua.
A proposta de dragagem do rio é elaborada pela Câmara Técnica de Rejeitos, do CIF. Já no mar, ainda não se tem uma proposta de intervenção de descontaminação e no manguezal e nas restingas uma proposta em elaboração é o plantio de espécies nativas, compara Joca Thomé. “O sedimento é muito leve, lamoso, quase coloide, se movimenta com muita facilidade. No mar, a dragagem teria que ser feita em áreas muito grandes e poderia trazer impactos ainda piores. Para manguezais e restingas, os professores estão preparando algumas propostas de reflorestamento, introduzindo espécies mais resistentes”.
Nexo causal
O relatório lista 295 impactos, que são agrupados em diversos temas em uma matriz de danos. Diferentemente de anos anteriores, em que as empresas e a Fundação Renova insistiam em negar o nexo causal entre o crime e os impactos observados em campo, desta vez a questão está pacificada. “Não existe mais a discussão se há nexo causal ou não. Todos os impactos são relacionados ao rompimento, alguns diretos e outros indiretos, alguns permanentes ou sazonais, reversíveis e irreversíveis”, afirma Joca.
O fim dos questionamentos, avalia, é uma consequência natural do trabalho desenvolvido pela Fest desde 2018, na época, como Rede Rio Doce Mar (RRDM). “São quatro anos de informações continuadas, com a mesma equipe, a mesma metodologia, isso dá segurança a todos para afirmar a quantidade e os níveis dos impactos. Quando se tem dados consolidados, em uma série longa, não pode mais haver dúvidas do que se afirma”.
Fé pública
Outra vitória das universidades diante dos posicionamentos infundados da Renova e suas mantenedoras é em relação à continuidade das entidades na execução do PMBA, conquistada na Justiça, que proibiu que a Renova rompesse o contrato com a Fest para contratar uma empresa privada de seu interesse. “Ganhamos na Justiça, vamos cumprir os cinco anos de contrato, que vence no ano que vem. E já estamos iniciando, na CTBio, as discussões sobre a continuidade do monitoramento. A ideia é continuar com as universidades, que têm fé pública, são idôneas”, relata.
Ciência na prática
A continuidade desse modelo de programa também proporciona benefícios para as próprias universidades, avalia Joca Thomé. “Isso tudo tem deixado um legado imensurável na universidade do ponto de vista de estrutura, formação de pessoal e capacitação. São 500 pesquisadores, doutores, mestrandos, bolsistas. O que a gente tem ouvido muito deles é que mudou a cabeça dos pesquisadores no sentido de fazer uma ciência mais prática, que dê mais respostas à sociedade. Até porque os dados, logo após coletados, são públicos, não há reserva por muito tempo”.
Conclusões e propostas
Conforme consta no 4º relatório, a lista inicial elaborada por todas as equipes de pesquisa que executam o PMBA/Fest apresentou 295 impactos, sendo 96 no Ambiente Dulcícola (rios), 130 no Ambiente Marinho e 69 no Ambiente Costeiro. “Os resultados indicam que tanto as matrizes abióticas quanto bióticas foram impactadas, em níveis que variaram de baixo a crítico. A maioria dos impactos nos Ambientes foi classificado com relação direta ou indireta com o rompimento da Barragem de Fundão, afetando o ambiente quanto a Sedimentologia, Química, Ecotoxicologia, Ecologia, Genética, Saúde e Comportamento”, afirma o texto em suas conclusões.
“O manejo e gerenciamento da área afetada, assim como as ações de recuperação, podem ser amplamente favorecidos a partir dos resultados aqui apresentados”, destaca. “A manutenção do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática poderá registrar em longo prazo a permanência ou redução do impacto crônico, documentando as tendências futuras das condições ambientais e da biodiversidade nos ecossistemas, assim como monitorar a eficiência das ações de recuperação ambiental implementadas na bacia do Rio Doce e região costeira e marinha afetada”, pondera.
“Considerando os termos de referência que indicam que esforços devem ser envidados de modo a retornar o sistema a seu estado original ou melhorá-lo, uma visão de futuro pode ser inferida deste primeiro relatório. Soluções baseadas na natureza, como manejo de solo e reflorestamento, têm o potencial de controlar a intensidade dos impactos compreendidos e sua propagação na paisagem, aumentando retenção e suavizando fluxos de forma a evitar pulsos extremos. Iniciativas de recuperação e restauração, no entanto, devem se basear em modelos complexos, que levem em consideração a hidrologia e seus processos de conectividade, incluindo retenção e dispersão, e a consequência hidrodinâmica da conectividade com os ambientes costeiros e marinhos. Uma vez implementada, a efetividade de iniciativas de recuperação e restauração deve então ser monitorada e reavaliada”, propõe.
*Essa matéria foi publicada originalmente no Século Diário.