Sem reparação, quase seis meses após tragédia em São Sebastião (SP), população reivindica direito à moradia digna
MAB e Defensoria Pública de SP dialogam com atingidos que sobreviveram à tragédia – responsável pela morte de 64 pessoas em fevereiro de 2023 – para discutir sobre direitos violados e participação popular no processo de reparação
Publicado 09/08/2023 - Atualizado 11/08/2023
Entre os dias 29 e 30 de julho, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em parceria com a Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, realizou visitas em comunidades do município de São Sebastião (SP), que foram atingidas pelas chuvas de fevereiro deste ano, para ouvir da população sobre a realidade local, dialogar sobre suas demandas e fortalecer uma articulação conjunta contra a violação de seus direitos.
Na noite do dia 19 de fevereiro, as chuvas na região chegaram a 640 mm em 24 horas e provocaram deslizamentos de terra em áreas de risco, causando a morte evitável de 64 pessoas, além de deixar dezenas de feridos e muitas famílias desabrigadas. Até hoje, quase seis meses após o ocorrido, muitas delas seguem aguardando ações de reparação como reassentamento e obras de infraestrutura que garantam a segurança das famílias que seguem em áreas afetadas.
Por isso, no último dia 29 de julho, foram realizadas visitas aos bairros e localidades atingidas, como Tropicanga, Beira Rio, Vila Sahy, Morro do Skimó e Vila Pantanal, onde houve o maior número de mortes e feridos. De acordo com a coordenadora do MAB, Liciane Andrioli, na ocasião, foi possível observar as graves violações de direitos humanos contra a população atingida e a ausência de empenho do poder público na busca de soluções eficazes para a reparação integral dos danos causados às comunidades.
A falta de informações às vítimas é um dos primeiros problemas relatados. Desde a tragédia até hoje, não foi realizado, sequer, um levantamento preciso de famílias atingidas, ou mapeamento das áreas atingidas. Também não foi criado um sistema de monitoramento eficaz das áreas de risco. Os laudos emitidos pela Defesa Civil tampouco esclarecem, de forma acessível, quais os critérios utilizados para as desapropriações e realocação, tendo em vista que – em algumas áreas de risco – algumas famílias foram realocadas e outras não.
A moradora da comunidade do Tropicanga, Adenilde Cerqueira, por exemplo, conta que a maioria dos seus vizinhos foram deslocados para uma moradia provisória no município vizinho Bertioga, mas ela permanece morando no local onde houve o deslizamento. Por isso, a atingida questiona qual é o método utilizado para a definição de quem será deslocado e demonstra a angústia de permanecer no local sem segurança e sem amparo algum por parte do poder público.
Além de não haver critérios claros, também não há um diálogo transparente com a população sobre a real situação das áreas de risco e quais ações o poder público prevê para a prevenção diante de novas tragédias. “Pudemos ver isso nitidamente na visita em todas as comunidades, sobretudo na Baleia Verde, local onde estão sendo construídos os prédios para realocar algumas famílias que estão alojadas temporariamente em Bertioga. A região já tem graves problemas de infraestrutura, como falta de água potável, enchentes, drenagens nas estradas e acesso ao saneamento básico. Por isso, muitos moradores estão preocupados com a vinda de mais 518 famílias para a comunidade sem a devida melhoria na infraestrutura do bairro”, conta Liciane. Um fator agravante é que as novas moradias estão sendo construídas em uma área de mangue, que é uma área de escoamento natural da água. Com a construção dos prédios, se agravou o problema das enchentes no local, que começaram a abalar as estruturas das casas já construídas.
Outro problema apontado pelos atingidos, é a falta de um plano de moradias dignas e segura para toda a população que vive nas áreas de riscos. Em nenhum momento, as famílias foram comunicadas sobre a existência de um planejamento de relocação a curto, médio e longo prazo, ou consultadas sobre os possíveis locais de construção de novas moradias, muito menos sobre o tipo das moradias. A população também denuncia que esses prédios que estão sendo construídos para o realocar os moradores sem que eles sejam consultados sobre o local ou tipo de moradia, deverão ser financiados pela própria população.
Segundo Tamires Cruz, também integrante da coordenação do MAB, o Estado tem falhado (em suas três esferas) em assegurar os direitos da população atingida pela situação de calamidade no município, no que diz respeito ao mapeamento de riscos, prevenção de desastres e realização de obras estruturais de segurança e reassentamento. Prova disso é que, no momento da tragédia, a própria comunidade foi responsável pelo resgate de 90% das pessoas que foram tiradas com vida da lama, pois não havia um plano de emergência e preparo necessário para esse tipo de situação. Para a coordenadora, porém, a falha do Estado no aspecto da proteção da população é anterior aos deslizamentos e continua se aprofundando após a tragédia. “Estamos nos aproximando dos seis meses dos deslizamentos e a população continua a mercê de seus direitos”, ressalta.
“É urgente se rever a lógica dos projetos de urbanização e enfrentar a especulação imobiliária que empurra caiçaras e outros moradores para áreas de risco, sem acesso a serviços ou estrutura adequada de moradia, onde ficam totalmente vulneráveis e desprotegidos diante da intensificação dos extremos climáticos e da situação de desigualdade social que expõe as pessoas de forma diferente aos riscos”, continua Tamires.
Neste contexto, Camila Marques, da Ouvidoria Geral da Defensoria Pública, afirma que a atuação do órgão junto aos movimentos sociais – como o MAB – é essencial para dar voz à população e garantir o direito à informação e à participação ativa nos processos de reparação. Segundo ela, as informações são passadas de forma muito técnica e grande parte dos laudos entregues às pessoas atingidas são compostos por termos que criam um cenário de incompreensão.
“A gente viu ali que muitos moradores desconhecem os seus direitos mais básicos, os seus direitos mais primários. Há muita desinformação com relação aos planos de atuação emergencial, aos planos de redução de risco e aos planos de habitação popular que estão sendo construídos”, explica a ouvidora.
Camila ressalta que a principal reivindicação da população é o direito à moradia. “Esse é um pleito comum em todas as localidades. Várias pessoas foram removidas das suas casas e ainda há muitas que permanecem morando em situações de alto risco”, afirma.
Há também uma demanda por parte das famílias sobre a questão da educação e saúde, já que a falta de atendimento psicossocial tem impactado diretamente na vida dos atingidos, pois eles vivem em constante pressão psicológica, tanto pelo medo de novos deslizamentos e enchentes, como também, pelo futuro incerto. “O clima nas comunidades atingidas tem sido tão tensionado que se criou um clima de terror psicológico, opressão, coação e desmobilização das famílias”, destaca Tamires.
A diarista Eliane Dias, atingida da região de Sítio Velho, reforça que falta espaços de diálogo com o poder público. “E falta clareza nos critérios de reassentamento e distribuições de doações, além de condições de moradia digna. Temos muitos idosos acamados na comunidade aguardando reparação e nós, moradores, nem conseguimos mais ajudar”.
MAB repudia omissão do poder público e promove articulação com comunidades
No último dia 30 de julho, durante reunião na Defensoria Pública de São Sebastião, estiveram presentes representações de diversos bairro. Foi importante ouvir os relatos dos atingidos, e perceber que toda população tem uma realidade em comum. Estão sofrendo pelas mesmas violações, pois estão vivendo um cenário de total desamparo e falta de transparência e informações sobre qualquer ação no que tange suas vidas. Foi importante também para pensarmos de forma coletiva em um planejamento estratégico e organizativo junto às famílias atingidas para avançarem na conquista de seus direitos”, afirma Tamires.
Já Liciane ressalta que toda a situação encontrada em São Sebastião está relacionada a negligências em questões ambientais relevantes e à falta de investimento em soluções para problemas recorrentes, como as enchentes. “A situação vivida pelas famílias é, portanto, agravada pela ausência de um Estado responsável e pela falta de políticas públicas básicas capazes de garantir moradia, saneamento e obras de segurança. Para o MAB, é inadmissível que a população atingida ainda esteja em tamanho abandono e com tantas incertezas sobre a reconstrução de suas vidas”, pontua a coordenadora.
Segundo ela, o Movimento defende a construção de um plano de reparação integral e digna dos danos causados aos atingidos e de recuperação e desenvolvimento das comunidades. “Esse plano precisa garantir à população condições dignas de moradia, saúde e segurança e proteção dos seus direitos em sua totalidade”, conclui.
Diante da realidade das violações dos direitos da população atingida vivenciada pelo MAB no litoral norte, o Movimento entende que a população atingida tem como direitos:
- A identificação dos responsáveis pela tragédia: a comunidade busca clareza sobre a responsabilidade do Estado em todas as instâncias, garantindo ações para evitar futuras tragédias.
- Informações claras e mapeamento das áreas de risco: o acesso a informações precisas e atualizadas sobre regiões vulneráveis é fundamental para a prevenção e gestão adequada de riscos.
- Diagnóstico social, ambiental, econômico e cultural com foco na população atingida e sua realidade local, no acesso a dados e análises precisas e em políticas públicas voltadas aos atingidos.
- Ação emergencial de curto e médio prazo que atenda às necessidades básicas da população atingida, através de custeio de aluguel, doações de alimentos, móveis, remédios, produtos de higiene e limpeza, entre outros.
- Participação e organização nas decisões: é necessário que a população seja envolvida e consultada nas escolhas que impactam suas vidas, como a definição de locais para reconstrução de moradias.
- Liberdade de organização e expressão política: o direito fundamental de se manifestar e se organizar deve ser preservado para garantir a voz às comunidades atingidas.
- Plena reparação de perdas humanas e materiais: a busca por justiça exige uma resposta completa e adequada à dimensão das perdas sofridas pelas famílias atingidas.
- Proteção e segurança: a implementação de um Plano de Ação Emergencial e a garantia de rotas de fuga seguras são cruciais para a proteção das comunidades em situações de risco.
- Opções de escolha de local de moradia: oferecer alternativas para a recomposição familiar, permitindo que as vítimas escolham onde reconstruir suas vidas e de que forma.
- Assistência através de políticas públicas: acesso garantido a serviços essenciais, como saúde, educação, trabalho e assistência social, de forma adequada e abrangente.
- Justiça, negociação e transparência: é preciso ter critérios claros para se evitar arbitrariedades e injustiças nas ações de reparação.
- Direito de ir e vir: assegurar a mobilidade das pessoas afetadas, sem impedimentos ou restrições indevidas.
- Assistência à cultura e aos modos de vidas tradicionais: preservar e apoiar as práticas culturais e modos de vida das comunidades atingidas.
- Justiça: garantir o acesso à justiça para que as vítimas possam buscar reparação por suas perdas passadas.
Atingidos pelo Clima
Vários especialistas têm apontado que as mudanças climáticas não vão afetar de maneira uniforme todas as comunidades. Essa disparidade na forma como os impactos se manifestam evidencia a presença do racismo ambiental e a negligência do estado com as populações que moram em áreas de risco, além de intensificar as desigualdades já existentes.
Por isso, o MAB reafirma a importância da organização popular da população atingida na luta pelos seus direitos e a participação da população nas decisões tomadas pelo poder público em relação à reconstrução de suas vidas e na reparação justa e integral que necessitam. A nossa batalha contínua em busca da construção de uma política que garanta direitos específicos para a população atingida. A criação de um fundo de proteção e reparação se torna imperativa para combater essa injustiça ambiental, permitindo que as comunidades marginalizadas enfrentem os desafios climáticos com seus direitos assegurados!