O racismo no cotidiano dos atingidos e das atingidas
“Eu não sabia que era uma coisa… um monstro tão devorador, tão violento e na maioria das vezes ele te deixa sem ação, sem forças até mesmo para continuar”
Publicado 24/05/2021 - Atualizado 30/06/2024
“Eu sempre ouvi falar em racismo, sempre assisti filmes e novelas sabia que ele existia. Mas, a partir do momento que aconteceu o crime da VALE, Samarco e BHP, em 05 de novembro de 2015, eu senti e sinto até hoje esse racismo na pele que entranha na alma da gente é triste, é triste! Eu não sabia que era uma coisa… um monstro tão devorador, tão violento e na maioria das vezes ele te deixa sem ação, sem forças até mesmo para continuar…”
Este é um depoimento de uma mulher negra de 43 anos moradora de uma cidade marcada historicamente pela segregação racial de várias formas. Simone Silva é militante do MAB desde o rompimento de Fundão e eu pude presenciar desde o começo a força, a presença e a energia que emana da sua experiência que tanto enriqueceu a luta dos atingidos por barragens na bacia do Rio Doce.
Assim como ela, outras centenas de mulheres e homens negros fazem este movimento acontecer em todas as regiões do país. Apesar da ausência de uma estatística sistematizada, não há dúvida que eles são a maioria numérica no Movimento. É sobre eles que quero me deter nesta reflexão.
Em março fizemos a Jornada de Lutas do mês, historicamente um período especial de lutas para os atingidos. Iniciamos com o Dia Internacional de Luta das Mulheres (8 de março), passamos pelo Dia Internacional de Luta contra as Barragens, pela Àgua, pelos Rios e pela Vida (14 de março) e encerramos esta etapa no Dia Mundial da Água e data do assassinato de Dilma Ferreira (22 de março).
Em 2021, a pandemia nos impediu de fazer ações massivas, mas o compromisso com aquilo que deve ser feito com coragem e precisão continua com iniciativas em todo o país em torno da pauta da vacinação já para todos, auxílio emergencial de 600,00, lutas contra as privatizações, contra os altos preços da energia, da água, do gás de cozinha, etc.
Este momento também é uma boa oportunidade para reafirmar um aspecto fundamental da luta da classe trabalhadora, que, no Brasil e no restante da América Latina, tem traços permanentes e profundos: o racismo estrutural. Os dois textos que serão publicados, a começar por este trazem um convite a reflexão que surgiu a partir de um Grupo de Estudos da Questão Racial do MAB em Minas Gerais e que produziu um caderno de textos no final de 2020. Aqui compartilhamos um aspecto importante a ser compreendido em detalhes: como os atingidos e atingidas vivem o racismo?
A barreira racial como um obstáculo a mais para os atingidos pelo setor elétrico e a mineração
Sabemos que os atingidos e atingidas do MAB são uma parcela da classe trabalhadora que decidiu construir o próprio instrumento organizativo para, de forma autônoma, participar da luta de classes. Contribuem, assim, à sua maneira, para a revolução brasileira e para a construção do projeto popular da nova ordem social a partir dos temas da água e da energia.
E assim como para o restante da classe que vive cotidianamente os efeitos do racismo estrutural no capitalismo, os atingidos como parte desta classe também o vivem em todos os aspectos da vida.
A professora Dulce Maria Pereira foi primeira mulher negra a ocupar um cargo na diplomacia brasileira, tendo presidido órgãos como a Fundação Cultural Palmares e a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Em uma entrevista para o site do MAB publicada no dia 1º de julho de 2020, fez importantes reflexões sobre o contexto da luta antirracista no Brasil e traz exemplos de como pode ser a vivência do racismo pelos atingidos.
Dulce Maria afirma que o capitalismo enxerga as regiões ocupadas historicamente pelas populações negras como “territórios de sacrifício”. Sendo as terras nobres para o capital que precisa extrair as matérias-primas para sua reprodução, a prioridade será garantir o domínio sobre estas terras e territórios e com baixo custo. Assim, são organizados instrumentos legislativos, jurídicos e políticos para garantir a “desocupação”. Não importa o grau de violência física ou simbólica que isto represente. Ela lembra de um caso que desde já podemos considerar clássico pela universalidade e nitidez da contradição:
“a tendência de tentar retirar os negros e os quilombolas dos seus territórios também se vê na própria escolha de barragens, como é o caso de Fundão, construída logo acima de uma comunidade negra. Se ali onde é Bento Rodrigues fosse Alphaville, a negociação seria outra. Mas, ali, obviamente, é uma comunidade negra, então ela fica mais vulnerável.”
Assim como Bento Rodrigues, a experiência na Bacia do Rio Doce mostra muitas destas escolhas pautadas pelos mesmos critérios. Neste sentido, a Vale é um exemplo de coerência histórica. Desde o processo de ampliação da ferrovia Vitória-Minas, de que se abundam relatos da violência contra as comunidades ribeirinhas, indígenas e moradores de áreas urbanas. Essas situações passam pela construção das hidrelétricas até chegar no derramamento criminoso de rejeitos da mineração, sendo evidentes as escolhas e as formas de atuação que demonstram violência estrutural contra a classe trabalhadora (inclusive seus próprios funcionários) e com um recorte racial preponderante.
Florestan Fernandes já afirmava que, além da barreira social de classe, os trabalhadores negros têm a barreira racial como um obstáculo adicional na luta para realizar-se como gente. Em relação aos atingidos, é possível apontar muitos exemplos de como isto acontece, na prática.
Dentre as muitas tarefas que nos propomos, estar nos meios institucionais é uma das que mais exigem dos atingidos enfrentar situações do racismo, tanto enquanto coletivo em ação quanto como indivíduos cuja pele é transformada em impeditivo adicional.
Simone Silva conta como foi viver a experiência de estar no Senado Federal representando seu próprio povo e sua organização e como ela foi tratada por causa desta coragem:
“…quando eu vi ele mesmo (o racismo) foi quando eu fui no Senado. Eu fiz uma fala no Senado sobre o crime da Vale em Mariana. Da cidade de Mariana até a foz do rio no Espirito Santo, eu fui atacada nas redes sociais. O povo dizia que eu não poderia estar ali no Senado falando por eles, porque eu era mulher, preta e de alto de morro, que quem tinha que estar ali naquele lugar, naquele espaço de fala, seriam as pessoas brancas da cidade, teria que ser as pessoas que tinham status, que detinham poder. Eu fiquei muito mal, fiquei depressiva, fiquei de cama. Porque a nossa cidade sempre foi uma cidade racista, tanto que tem a história do canteiro que é o lado dos pobres e o lado dos ricos, tem a ‘capelinha´, que é no alto do morro, que é a ‘capelinha´ dos negros. Então, a partir do momento que eu fui atingida, eu posso te dizer, infelizmente, o que é racismo.”
Simone é de Barra Longa, cidade com menos de 6 mil habitantes com seu centro urbano às margens do Rio Carmo. Tem 60% de sua população formada por negros e pardos com uma história conectada à origem da povoação no início do século XVIII, que começou motivada pela busca de ouro de aluvião. Esta é a cidade que até os anos 1980 dividia sua população pelo chamado “canteiro”, um jardim na avenida principal em que de um lado passavam os brancos e de outro, os negros. Esta divisão territorial de presença organizada pela cor era reproduzida na igreja e em outros ambientes e durou até bem recentemente na história.
Outro exemplo expressivo vem dos relatos de Aida Ribeiro Anacleto, moradora de Passagem de Mariana, distrito de Mariana. Ela é uma mulher negra de 57 anos, que atua como assessora parlamentar, militante e presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial. Aida foi vereadora pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade entre 2009 e 2012, sendo a primeira mulher e a primeira mulher negra a ocupar o cargo na Câmara fundada em 1711.
“Então, hoje muitas de nós que tivemos a felicidade de estar na universidade, muitas de nós doutoras, ainda assim… muitas de nós médicas, ainda assim nós sofremos aquele olhar acompanhado da pergunta: “você é a enfermeira? Você é a babá?” Nunca podemos exercer uma grande função, porque a sociedade entende que este não é o nosso direito, mas não é bem por aí.
Eu já sofri esse tipo de preconceito quando eu estava vereadora. Eu ia participar, por exemplo, de um evento da cidade representando a Câmara e eu tinha que falar com alguém para comunicar para o segurança, aqueles homens que ficam de preto, que me deixassem entrar, porque eu era uma autoridade, assim como todos os outros que lá estavam na sua representatividade. Então este preconceito passa inclusive por nós mesmos.
É uma coisa muito triste e isso basta sentir na pele, como eu já senti em vários segmentos da sociedade. Então, isso é natural e tem um detalhe de quanto mais distante da cidade você está, este preconceito, esse racismo, ele acontece consciente ou inconscientemente, então, basta você ir ao posto de saúde pra ver como você vai ser tratada.”
Graça Cruz é pedagoga aposentada e advogada de 72 anos, moradora de Resplendor, atingida pela Hidrelétrica de Aimorés, de propriedade Vale/CEMIG. Ela é integrante do Partido dos Trabalhadores (PT) de Resplendor e, desde a chegada do MAB na região, apoia e acompanha a luta do Movimento. Como professora, vivenciou de maneira muito concreta contradições na política e na convivência com as crianças mais pobres da cidade que é dividida ao meio pelo Rio Doce e pela ferrovia Vitória-Minas.
Graça reforça que “os negros e negras são a maioria dos atingidos” e destaca a relação dos atingidos com a institucionalidade, inclusive dos municípios. Em suas palavras, os eleitos são:
“representantes da classe dominante. No pleito, representantes dos Poderes Legislativo e Executivo atendem aos anseios da referida classe. Conforme à práxis de todo exercício de poder, a plebe, fruto de uma cultura escravagista, a maioria de cor preta, é dominada e, raramente, inclusa em alguma política pública, ocupando sempre a posição de coadjuvante.”.
Ainda nesta tarefa institucional, não raro precisamos nos articular com as instituições de justiça e conviver com a interferência constante do poder judiciário, sem dúvida o espaço mais fechado aos não brancos da sociedade e o mais antidemocrático da República. No caso da Bacia do Rio Doce, onde quase todos os temas estão judicializados, esta é uma questão grave que tem obrigado os atingidos a enfrentarem um contexto extremamente difícil para a luta por direitos.
Para além das manipulações claramente acordadas com as mineradoras, a atuação do juiz federal Mário de Paulo Júnior descortina uma face ainda mais perversa da Justiça, como relata Simone Silva:
“Já no Poder Judiciário, eu vejo o seguinte: eu tive a oportunidade de ir e de conversar. Eu fui uma das primeiras atingidas a conversar com o Judiciário, lembrando que a gente tinha muito medo de chegar no Judiciário. A gente tinha um medo enorme do ser e, quando eu cheguei, eu fiz a fala de que ele era o lobo mau da história dos atingidos e a resposta dele foi: diga ao povo que eu não sou esse lobo, que eu não sou esse bicho que estão pintando ai. Mas quando eu tive a oportunidade de estar cara a cara em uma reunião, em um processo de negociação, o juiz Mário de Paula Júnior disse que essas lutas, que esses movimentos que a gente faz pelos direitos não existe, que isso tudo é perfumaria.
Eu entendi o seguinte: que ele disse que o povo não entende de direito, que o povo não sabe fazer luta, que o povo não tem a noção, que o povo é tudo leigo, é sem noção do que é direito. Mas ele se engana, porque os atingidos conhecem todo o TTAC, TAC GOV, todos os documentos relacionados à vida dos atingidos. Os atingidos entendem hoje. Os representantes do Judiciário não estão no território com os atingidos, nunca pisaram no território junto com os atingidos, não sabem quais as dificuldades, qual o processo. Eles só ouvem aquilo que as criminosas violadoras de direitos dizem. E dizer que nós somos perfumaria … nós somos vítimas de um crime hediondo, um crime com todos, todos os direitos violados dia e noite, vinte e quatro horas, onde o poder judiciário está sempre do lado dos criminosos.”
Talvez poderíamos argumentar que este foi apenas um preconceito genérico contra a luta social vindo de um subalterno bem pago da classe dominante. A forma com que Simone e outras pessoas negras narram a relação com este juiz em específico, porém, contrasta com a forma com que ele tratou atingidos defendidos por uma advogada branca, que lembra uma jovem alemã de classe média, decidindo em favor do seu pedido, tecendo elogios pessoais a ela em várias páginas da sua decisão e garantindo que somente ela ganhasse sozinha R$ 600 mil, apenas referente aos processos de duas cidades. Todos estes fatos indicam que estamos diante de um fenômeno mais complexo que evidencia um racismo praticado abertamente.
Nem precisamos detalhar o quanto esta advogada desarticulou um amplo trabalho coletivo feito em toda a Bacia do Rio Doce pelas organizações sociais e instituições de justiça, favorecendo claramente as empresas violadoras de direitos.
Sobre este fato, Graça Cruz opina ampliando também o olhar sobre o conjunto das mulheres atingidas:
“As mulheres negras estão na extremidade mais afetada pelo racismo, pois são alvo direto, não somente do racismo, mas também do machismo, que deslegitima sua importância como pessoas ativas na sociedade”.
E ela conclui: “vale ressaltar as donas de casa, especialmente, em situações vulneráveis que veem suas reivindicações proletadas ou até mesmo negadas, como o direito à alimentação, ao consumo de água apropriada. Ou as pescadoras, que sequer são reconhecidas. Outro fato que vale observar é que as causas jurídicas, quando peticionadas por operadoras do direito de cor branca, ganham mais celeridade, destaque e acatamento”.
Thais Lobo é integrante de um grupo voluntário do MAB de estudantes de Direito, que atua na decupação de entrevistas em uma iniciativa do Movimento no Médio Rio Doce chamada Projeto MEMÓRIA E HISTÓRIA: A VIDA E A LUTA DOS BARRAQUEIROS E BARRAQUEIRAS DA BR 381, EM PERIQUITO. Ela também contribuiu na decupação dos áudios das entrevistas deste texto.
*Thiago Alves é jornalista, militante na Bacia do Rio Doce e integrante do Grupo de Estudos Raciais do MAB em MG. O artigo contou com a colaboração de Thaís Lobo, estudante do 2º período de Direito da Faculdade de Direito de Ipatinga.