A partir da indignação com os problemas ocasionados pelas enchentes, mulheres se organizam no movimento em busca de direitos
Publicado 08/02/2021 - Atualizado 08/02/2021
Na manhã de 28 de janeiro, os atingidos da zona leste se reuniram na sede do Grêmio União de Vila Nova, no Jardim Nair, para manifestar aquilo que há muitos anos afeta a vida população: as constantes perdas provocadas pelas enchentes.
Portando máscaras, distribuindo álcool em gel, vestindo camisetas do MAB e carregando bandeiras e cartazes com fotos das enchentes, os atingidos marcharam pelas ruas dos bairros atingidos em direção à subprefeitura de São Miguel Paulista.
A “mulherada”, termo usado nestes espaços ao se referir ao engajamento das mulheres nas lutas e ações, era a grande maioria daquela marcha, que caminhou até a subprefeitura para reivindicar seus direitos.
O calor, a subida e o cansaço não foram impedimento para o povo, que entoava músicas e palavras de ordem que davam o tom da luta e animavam o espírito coletivo. “Águas para a vida, não para a morte!”, “Atingidos em defesa da vida: basta de enchentes!”, “Somos todas e todos atingidos!” foram algumas das frases recorrentes, repetidas no trajeto e no ato, especialmente na chegada à subprefeitura.
“Aqui toda vez que chove a gente perde nossa história”, comenta uma das companheiras da região sobre as enchentes, na ocasião de uma das enchentes em 2020.
Na zona leste de São Paulo, mais precisamente na região de São Miguel Paulista e Itaim Paulista, às margens do Rio Tietê, são milhares as pessoas que sofrem com as enchentes. A cada chuva que chega, e principalmente durante as chuvas de verão, casas e ruas ficam alagadas, provocando inúmeras perdas – colchões, móveis, eletrodomésticos, carros, documentos, alimentos, objetos pessoais e memórias que ficam submersas e perdidas nas águas que, por vezes, alcançam a altura de uma pessoa adulta.
Além disso, a água se mistura ao esgoto, o que é fonte de doenças e ataca a saúde da população. Em todos os casos, ainda, o trauma e os efeitos psicológicos são tão grandes que, a qualquer chuva, as pessoas ficam desesperadas, buscando resgatar pertences levando-os para outras casas ou em andares construídos acima do térreo como refúgio nos períodos de enchentes.
Não se trata apenas de um efeito climático, mas de um processo histórico e social de exclusão, no qual a população mais pobre e trabalhadora foi obrigada, nas grandes cidades, a ocupar regiões periféricas em morros ou várzeas de rios, muitas vezes de modo desordenado, acessando moradias em situações precárias, sem o apoio de políticas de planejamento urbano e infraestruturas associadas que atendessem este contingente.
Enquanto isso, as áreas nobres e valorizadas ficaram em mãos das classes mais ricas. Para além deste processo, esses bairros da zona leste atingidos por enchentes são ainda mais afetados pelo fechamento das comportas da barragem da Penha, de responsabilidade do governo estadual, em épocas de chuva, para evitar o transbordamento do rio na altura da marginal Tietê, enquanto as barragens acima são abertas, o que gera uma grande concentração de águas no local.
O assoreamento dos rios, o asfaltamento de várzeas, o descaso dos governos sucessivos, tanto municipal como estadual, são agravantes de um problema social que existe há décadas, e que na atual conjuntura é somado aos efeitos da crise sanitária da Covid-19 e crise econômica (desemprego, ausência de renda, aumento das infecções, etc.), impactando de maneira negativa os atingidos.
A luta, no entanto, não começa nem termina no ato do dia 28. Antes e depois desse dia, a jornada de reinvindicações é constante e cotidiana, empreendida pelos coordenadores e coordenadoras do MAB, nas passagens de casa em casa das famílias atingidas pelas enchentes, tanto para saber da situação como para convidá-las à luta com organização do movimento, realizando reuniões, planejando ações, buscando acabar com as enchentes e garantir a reparação da população.
As famílias se organizam em grupos de atingidos, definindo coordenadores e coordenadoras por grupo, e assim vão se somando ao longo de toda a região para defender seus direitos. Esse trabalho organizativo do MAB na zona leste é realizado em meio às enchentes e pandemia, no início de 2020, com ações de solidariedade e ajuda emergencial e humanitária, em parceria com a Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço (que representa o Fórum Ecumênico ACT Brasil), distribuindo alimentos, materiais de higiene, máscaras, álcool em gel, dando apoio psicossocial às famílias nesse período de crise.
Foi assim que Maila Amaral das Neves, atingida pelas enchentes e moradora do bairro União de Vila Nova, assim como muitas mulheres da região, se organiza no movimento para lutar pelos direitos das populações atingidas pelas enchentes.
Maila é uma das coordenadoras na região e nos explica o processo de envolvimento, organização e luta. “Para mim, foi um algo novo na verdade, eu não me envolvia com política, só fazia o meu papel de cidadã, ia lá votar e tchau, né. Mas, fiquei impressionada, tive oportunidade de falar da minha comunidade, de estar presente em reunião com o prefeito e foi gratificante, foi prazeroso. O MAB tem pessoas muito fortes, guerreiros, na reunião, eu pude ver o pessoal falando alto, duro, eles reivindicam, solicitam, lutam pela população mais carente”.
A atingida conta que conheceu o MAB depois do crime da Vale em Brumadinho, e foi convidada pela pastora Neia, que segundo Maila é uma líder comunitária e “mulher guerreira”, faz trabalho a muito tempo na região, e sugeriu esse envolvimento. “Vejo a luta de todas as pessoas e me veio à vontade de abraçar essa causa”, relata.
“Descobrimos que existe uma porteira [barragem] na região da Penha, ali quando chove o que eles [DAEE] fazem é fechar a porteira onde a água não consegue passar, e a água acaba voltando toda para aqui para região de União de Vila Nova, e acaba afetando o Lapena, o Itaim Paulista, vila Mara, vila Seabra, Pantanal e fora outras regiões. Outra área muito prejudicada aqui na leste é também é o Jardim Keralux, uma região muito preocupante, muito atingida pela enchente”, diz Maila.
A moradora da Zona Leste disse que, antes, achava que a culpa disso tudo era da população por colocar lixo em qualquer lugar, mas depois descobriu que há um grande descaso dos governos com as barragens e a população da região.
“Na verdade, eles acabam fechando barreiras para benefícios próprios deles, para empresas, para várias coisas e isso acaba prejudicando a população menos favorecida”, pondera.
“Eu tenho depoimentos de famílias que perderam tudo, imagina uma pessoa perder tudo o que tem, o trauma, começar de novo todo ano, porque todo ano tem chuva, ela vai ter que continuar o ano inteiro trabalhando para conquistar novamente fogão, geladeira, máquina de lavar, muito difícil para quem não tem condições financeiras nenhuma”, comenta Maila.
Foi a partir dessa indignação que Maila passou a fazer parte da organização para lutar pelos direitos de atingidas e atingidos, e atualmente coordena, junto a outras três mulheres, um grupo de 34 famílias, priorizando atualmente o contato por mensagens para manter o distanciamento durante a pandemia e garantir a comunicação, um diálogo que ocorre diariamente, em um processo que potencializa a força coletiva.
“Eu acho interessante o trabalho em grupo, porque uma vai comunicando com a outra a necessidade de cada uma e sabemos que uma andorinha sozinha ela não faz verão, precisamos estar juntos, unidos para vencermos essa batalha, sabemos que não é fácil, mas a vitória é certa. Quando estamos unidos em grupo, um ajudando o outro, um escutando o outro, e assim nós vamos seguindo avante. É interessante porque o movimento dá oportunidade para outros coordenadores também fazerem parte dessa luta, e quanto mais pessoas para somar melhor vai ser para ganharmos a batalha”.
Em nome dessa união e da força coletiva, o grupo leva o nome de “Coragem”: “o nosso grupo chama ‘Coragem’ porque eu vi que são mulheres corajosas, são famílias com coragem de lutar, com vontade de vencer”, explica. Além do grupo “Coragem”, outros grupos têm se formado, e alguns já com nomes – como no caso dos grupos “Força MAB” e “Fortaleza MAB”. Segundo Maila, essa forma de se organizar “dá oportunidade para outros coordenadores também fazerem parte dessa luta, e quanto mais pessoas para somar melhor vai ser para ganharmos a batalha”.
O protagonismo que as mulheres têm no processo, sendo visível nas lutas e ações, é parte da essência do movimento. “Eu acho interessante ter essa participação de mulheres no MAB, porque de qualquer forma acaba mostrando para todos que a mulher tem o seu valor e que existem mulheres guerreiras, solidárias, mulheres que se preocupam com a causa das pessoas menos favorecidas” comenta Maila.
Como Maila, outras mulheres são coordenadoras dos grupos das famílias atingidas e estão construindo com bravura o Movimento dos Atingidos por Barragens na zona leste, e se somam na luta por um feminismo popular.
Perto do marco importante, com a data do 8 de março, as mulheres do MAB-SP se organizam sob o lema “Mulheres atingidas em defesa da vida!”. Serão muitas as ações e ampla a organização para exigir dos governos o direito a viver de maneira digna, acabar com as enchentes, reparar as perdas das famílias atingidas e, assim, também garantir o fim das opressões e defender a ampliação de direitos das mulheres.