Lucro a todo custo: entenda porque setor elétrico no Brasil repassa altas tarifas para população

A indústria de eletricidade no Brasil é dominada por grandes grupos internacionais, que obtém lucros extraordinários às custas das bases naturais do país e do bolso dos trabalhadores

Marcos Santos / USP Imagens

A energia elétrica impacta diretamente a vida das pessoas. Representa um insumo fundamental de todas as cadeias produtivas, mas sobretudo é um direito fundamental do povo. O Brasil possui uma base natural de elevada produtividade, por meio da geração hidrelétrica (62% da matriz energética do país provém desta fonte) porém, o baixo custo de produção não é utilizado para garantir energia a preços acessíveis ao povo, muito pelo contrário. 

A lógica que domina o mercado está muito longe da concepção da energia como um direito, a realidade demonstra que a indústria elétrica no país é um grande negócio que reverte lucros extraordinários para grandes grupos econômicos internacionais e seus acionistas. 

Os donos da indústria de eletricidade

Segundo um estudo publicado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em maio deste ano, quinze grupos econômicos monopolizam o controle da indústria de eletricidade no Brasil. Dentre eles, só três são estatais, e também estão sendo privatizados por dentro. A  Eletrobrás, que detêm cerca de 30% da potência instalada do país e 50% do sistema de transmissão, a Copel, que pertence ao governo do Paraná, e a CEMIG, empresa controlada pelo Governo de Minas Gerais, mas que tem só 17% de controle acionário estatal. 

Para Gilberto Cervinski, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a energia “está dominada por um cartel internacional de transnacionais que impõem altos preços na conta de luz do povo e controlam todas as estruturas do Estado, privilegia ainda mais os privilegiados e penaliza os menos favorecidos, configurando um modelo que é contrário aos interesses do povo e do país”, afirma. 

“Historicamente, temos denunciado que o preço da luz é um roubo. Mesmo com custos baratos de produção, o povo paga um dos preços mais altos do mundo. Essa é a grande contradição deste modelo. Eles cobram caro do povo e ao mesmo tempo entregam energia baratíssima para os mais ricos, como grandes empresas industriais e shopping centers, os chamados consumidores livres”, comenta Cervinski. 

O resultado é um excessivo peso do gasto com energia elétrica sobre o orçamento dos mais pobres. Segundo levantamento publicado no blog Outras Palavras, baseado em dados da ANEEL e do IBGE, o custo médio da tarifa residencial, nos primeiros seis meses de 2020, ficou em R$ 135, o que representa mais de 10% do rendimento mensal domiciliar per capita no país em relação aos dados de 2018. Considerando que grande parte da população tem renda igual ou inferior ao salário mínimo, o impacto da tarifa de luz no bolso das famílias é enorme. 

Problema histórico


“A nossa independência começa com Portugal transferindo uma enorme dívida para o Brasil, a colônia que deixava de ser colônia. Já nascemos dentro dessa lógica, e com a indústria de eletricidade é igual, nasce nos países centrais, no centro do desenvolvimento da produção capitalista e da lógica do aumento da produtividade, e chega ao Brasil com a vinda dessas grandes empresas para divulgar seus equipamentos e criar o mercado para a nova indústria”, explica o professor Dorival Gonçalves Junior, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), que tem sua tese de doutorado sobre a indústria elétrica no Brasil.

O setor de eletricidade esteve totalmente centralizado nas mãos do capital estrangeiro até a década de 30, ele explica, e só durante a grande depressão econômica de 1929 se iniciam os primeiros grandes investimentos dos Estados em geração de eletricidade. 

No Brasil, as empresas já vendiam a energia a preços internacionais, e foi só nessa época que o preço começou a ter uma relação com o custo de produção local e foi sendo possível um maior controle sobre as estrangeiras, que começaram a desinvestir. 

Entre indas e vindas, começa surgir uma indústria elétrica estatal, no marco do primeiro esforço de construção do Brasil como uma nação soberana, mais de 100 anos após o “grito de independência”. Após o fim da segunda guerra mundial, a eletricidade se consolida como um setor dominado quase em sua totalidade pelo Estado. 

Lucas Calisto / Coletivo de Comunicação MAB (Ceará)

A fase atual, segundo Dorival, é iniciada nos anos 70, quando surge a primeira experiência de desestatização da indústria elétrica, feita pela ditadura de Pinochet, no Chile, que começou após o golpe que levou a morte do presidente socialista Salvador Allende em 1973. Essa fase, explica: “é fundada no princípio de que esta atividade deve ser exercida pela iniciativa privada, através de uma estrutura industrial desverticalizada, sendo estabelecida em quatro setores empresariais: geração, transmissão, distribuição e comercialização. Visão que, no presente, constitui a hegemonia mundial”, pontua. 

A transferência

No Brasil, a indústria volta às mãos da iniciativa privada na década de 90, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Na época, explica Dorival: “Aquele enorme patrimônio, que tinha sido organizado pelo Estado e construído com o esforço do povo, foi lançado nas mãos do mercado, transferido a ele. Ao mesmo tempo, para atrair investidores internacionais o preço da eletricidade foi sendo internacionalizado novamente. Então, a partir daquele momento entramos na contradição de ter condições para produzir energia muito barata, mas ter altas tarifas. É que a indústria se converteu em um grande negócio, e muito cobiçado, pois gera lucros extraordinários”. Mas afirma: “Isso não é de agora. Mesmo com alternâncias ou modificações, a centralidade foi quase sempre do sistema financeiro”. 

A indústria elétrica implica, necessariamente, investimentos em capital constante, construção de usinas, compra de materiais, geradores, linhas de transmissão,etc. Nas privatizações, esses custos todos são repassados ao consumidor, sendo que já tinham sido amortizado ao longo de vários anos. Ou seja, o capital privado recebeu nas mãos um setor que o Estado tinha construído e a sociedade pagado, então tudo o que vem pela frente é lucro para as empresas. Para Dorival, “essa é uma solução que o capital sempre teve na mão, e nunca saiu de cena” e por isso são tão reticentes ao controle estatal, pois esse negócio é uma mina de ouro para eles”.

Sem controle

Lucas Calisto / Coletivo de Comunicação MAB (Ceará)

A chegada ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT) gerou alguns avanços, mas o modelo se manteve sob controle do capital privado e do mercado internacional. Mesmo sem mudanças estruturais, a reforma do setor, em 2004, durante o primeiro governo Lula, enfatizou o papel do Estado no planejamento e tirou a Eletrobrás do programa de privatização. 

Em 2013, vendo que a indústria estava expandido muito os custos da eletricidade, o governo Dilma Rousseff teve uma ação política para tentar controlar os preços. Ela retirou das tarifas os custos relativos a amortizações do investimento inicial para construção das usinas e linhas de transmissão. 

As empresas só podiam repassar o valor do custo de operação, e a medida conseguiu reduzir o preço da eletricidade. Sem ação política do Estado, as empresas continuam repassando esse valor eternamente para as tarifas da população.

“A indústria elétrica teve um papel fundamental no golpe contra Dilma Rousseff”, afirma Dorival.

Dorival aponta que: “Na crise de 2008, o que se viu no mundo foi a dificuldade de retomar o crescimento. Então, em qualquer lugar que você tenha espaço para recuperar lucro de forma tão fácil os capitalistas vão estar. Por isso é que eles não querem que ninguém tenha controle desse patrimônio, e que cada vez que existe um projeto que tenta ter o controle do Estado sobre essa área, chegam os golpes”. 

Vender o que sobrou

Desde a redemocratização, a ideia de privatizar a Eletrobrás ronda o Brasil. FHC quebrou o monopólio estatal e a colocou no Programa de privatização, assim como Michel Temer também tentou e não conseguiu. O governo neofascista de Bolsonaro e sua equipe econômica, liderada pelo ultra-neoliberal Paulo Guedes, não são a exceção, e estão tentando avançar na privatização da empresa.

Para o Movimento dos Atingidos por Barragens, “a privatização destrói a soberania, aumenta o custo da energia ao povo, leva as pequenas e médias empresas à falência, impede a recuperação da economia e gera desemprego em massa. Só piora a situação do povo e do país”.

E Dorival propõe a reflexão: “Imagina o esforço de organizar trabalhadores para construir uma empresa como a Eletrobrás, com essa capacidade, com essa estrutura. O Estado fez isso. E você vai deixar nas mãos do mercado? Os países centrais nunca deixaram o mercado tomar conta do setor elétrico deles. Isso não existe”.

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