Fundação Renova e a violação do direito à moradia
É preciso perguntar como a Fundação Renova consegue fazer uma (não) reparação dessa forma. E para responder a essa pergunta é também preciso lembrar que, na verdade, estamos lidando com empresas: Vale, Samarco, BHP Billiton e a própria Renova
Publicado 04/05/2020 - Atualizado 04/06/2020
Nessa semana, completa-se quatro anos e seis meses do crime da Samarco, Vale e BHP Billiton na bacia do rio Doce. Desde então, o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB têm buscado organizar as pautas, motivar as lutas, fortalecer a esperança dos atingidos diante da postura cotidiana da Fundação Renova que é um instrumento de violação de direitos mantido e coordenado pelas mineradoras.
Durante os próximos dias vamos divulgar diversos materiais com o objetivo de não deixar esse crime continuado cair no esquecimento. Entre os materiais, estão textos que vão trazer um balanço em série desse período apresentando informações que confrontam a poderosa publicidade das mineradoras e reafirmando pautas fundamentais para os atingidos bem como conquistas alcançadas pela luta popular.
O primeiro tema a ser abordado é o direito humano à moradia. De início, já pode-se afirmar que depois de 4 anos e meio não temos nenhuma casa pronta nos reassentamentos coletivos, ou seja, os desafios permanecem. As angústias quanto ao prazo de entrega dos reassentamentos seguem. O não reconhecimento de atingidos e atingidas continua sendo uma prática da Renova, assim como ações que não levam em conta a participação destes.
De acordo com matéria do jornal Estado de Minas, de 30/10/2019, e com conteúdo patrocinado pela Fundação Renova, “de lá (2016) para cá (2019), foram registradas 1.800 manifestações das famílias que serão reassentadas e foram realizadas mais de 1.900 reuniões coletivas e individuais dessas famílias com os arquitetos da Renova. Para a escolha do local, foram analisadas mais de 24 propriedades e a aprovação dos projetos urbanísticos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo aconteceu em assembleia com participação das famílias”.
Passado tanto tempo, a grande maioria dele preenchido por intensas reuniões coletivas e visitas individuais como se pode ver no relato citado acima, há entre os atingidos de Bento Rodrigues muita insatisfação com o projeto da nova comunidade. Alguns desses são os futuros moradores da rua das Mercês, que não desejam morar nesses locais por serem muito inclinados, diferentemente do local onde moravam na comunidade atingida.
Os atingidos conseguiram se organizar e se fortalecer como grupo entendendo que é possível, ao menos, dizer que estão insatisfeitos e pensar como resolver essa insatisfação. Além dessas questões relativas a problemas nos reassentamentos há outros. A comunidade será urbana ao invés de rural, algumas famílias terão propriedades menores do que tinham antes do rompimento, os desenhos de algumas casas não estão sendo feitos de acordo com o desejo do atingido e há dúvidas sobre a capacidade da forma de abastecimento de água que será implementada. A localização da estação de tratamento de esgoto no reassentamento de Bento Rodrigues será modificada após pressão dos atingidos.
Depois de muita pressão, as novas famílias formadas após o rompimento foram reconhecidas, mas ainda há debate sobre o prazo limite para que uma nova família se forme e tenha direitos. Além disso, não está certo onde elas serão alocadas no projeto da nova comunidade.
Sobre as famílias que estavam começando a construir suas casas na comunidade atingida, esSas também não sabem se serão e onde serão alocadas na nova comunidade, com moradias já finalizadas.
O prazo para o término dos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo está fixado na justiça, mas sem acordo com as empresas e sem expectativa dos atingidos que elas irão cumpri-lo. Isso gera mais angústia por não saberem quando moradia, comunidade e a vida de volta. O prazo fixado na justiça é 27 de fevereiro de 2021 e prevê multa por descumprimento. Esse prazo já mudou diversas vezes. O primeiro prazo apresentado pela Samarco era março de 2019. A Renova quando se apresenta à comunidade diz que o prazo seria dezembro de 2018.
Logo fica claro que esses são prazos irreais e começa-se a debater os prazos de fevereiro de 2020, agosto de 2020 e dezembro de 2020. Marcela Oliveira Decat de Moura, juíza do processo em Mariana, havia decidido pelo prazo de agosto de 2020, mas estendeu o prazo para fevereiro de 2021. O Ministério Público Estadual entrou com recurso dessa decisão, para que se mantenha o prazo em agosto de 2020, mas o recurso segue esperando para ser julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
Para todas essas questões em aberto – reconhecimento de novos núcleos, prazo dos reassentamentos e o reconhecimento de famílias com obras em andamento – o caminho a ser seguido deve ser o de audiências judiciais que buscam um acordo entre empresas, justiça e atingidos ou, no caso de não acordo, a decisão judicial.
Houve uma organização de dois grupos de atingidos que fiscalizam as obras nos dois reassentamentos. É uma iniciativa importante, mas ainda limitada e que a Renova usa como propaganda da participação que ela permite aos atingidos. A assessoria técnica realizada pela Cáritas acompanha esses dois grupos e é um espaço importante de formação de consciência dos atingidos em relação ao seu papel e ao papel da empresa.
Durante a pandemia do novo coronavírus, a Renova suspendeu por um período as obras nos reassentamentos, mas retomou as obras no dia 27 de abril. Há denúncias de que os trabalhadores estão sem equipamentos de proteção e os atingidos estão com o receio que a empresa faça as obras da forma que quiser e não siga as suas orientações, uma vez que esses não podem ir no local fiscalizar ou cobrar adequações das obras em reuniões.
Relatório da Ramboll, de novembro de 2019, mostra que 41% das famílias que serão reassentadas na nova comunidade de Bento Rodrigues estão insatisfeitas com o reassentamento. Mais 9% não vão para o reassentamento coletivo e buscaram outras formas de reparação. Das 275 famílias que têm direito ao reassentamento coletivo em Bento Rodrigues, 24 não vão para o reassentamento e 102 vão, porém estão insatisfeitas. Quase a metade (45%) não vão ou vão insatisfeitos.
Em Paracatu de Baixo são 137 famílias com direito ao reassentamento coletivo, dessas, de acordo com relatório da Ramboll, 16 já buscaram outra forma de atendimento e não irão para a comunidade reassentada. Em Gesteira são 37 famílias que terão direito ao reassentamento coletivo, depois de muita pressão dos atingidos. Das 17 hoje reconhecidas, 4 buscaram outras formas de atendimento. Ainda de acordo com o mesmo relatório, o orçamento total previsto para as obras dos 3 reassentamentos, que fazem parte do programa 8 da Renova, já aumentou 4,78 vezes entre 2017 e 2019.
O reassentamento familiar, apesar de ser o mínimo, porque se assemelha a uma carta de crédito um pouco melhorada, é o principal direito conquistado pelos atingidos organizados em Mariana. A Renova não reconhecia as famílias das comunidades de Ponte do Gama, Paracatu de Cima, Pedras e Campinas a ir para outro local longe da lama. Hoje, depois de mais de 2 anos de lutas por essa reivindicação, a Renova já comprou cerca de 10 terrenos e moradias para as famílias.
Ainda há muitas outras famílias na espera, mas é um passo importante ver o direito conquistado no papel se concretizando. Para algumas famílias, a Fundação tem tentando voltar atrás na decisão e coloca empecilhos para que elas acessem o reassentamento familiar. A Renova tem dito a essas famílias que elas devem permanecer nas áreas por onde a lama passou e que a própria Renova pode ajudar os proprietários a fazer uma readequação ambiental dessas áreas. Isso mostra mais uma vez a dificuldade que empresa tem de reconhecer os direitos dos atingidos.
Em Barra Longa os mesmos elementos de violação permanecem, mostrando que é uma forma de fazer a reparação que está sendo posta em prática.
O reconhecimento de quem é atingido e teria direito ao reassentamento foi uma grande luta no reassentamento da comunidade de Gesteira, zona rural de Barra Longa. A Renova reconhecia apenas 11 famílias e com a auto organização dos atingidos, apoio da assessoria técnica e do grupo de pesquisa da UFOP, o GEPSA, os atingidos conseguiram pressionar para que 37 famílias fossem reconhecidas com direito ao reassentamento. Após esse processo, os atingidos começaram a debater com a Renova as diretrizes para o reassentamento com vistas a elaborar de forma auto organizada um projeto.
A Renova fez algumas reuniões para debater as diretrizes mas depois negou-se a reunir. Ela só retornou novamente para o debate das diretrizes após a judicialização do processo, ou seja, depois que o juiz da 12º vara da Justiça Federal em Belo Horizonte colocou o reassentamento de Gesteira como um dos pontos prioritários, e orientou que a Fundação negociasse as diretrizes e participasse de reuniões de apresentação do projeto do reassentamento pela comunidade e seus parceiros. Essas reuniões aconteceram mas a Renova buscou levar a maioria das diretrizes para decisão judicial, sem entrar em acordo com os atingidos. No final de abril, a Fundação pediu ao juiz para que ele decida como deve ser o abastecimento de água da comunidade, ao invés de uma reunião ou acordo com os atingidos que buscam uma negociação sobre esse tema há mais de um ano.
Outro processo que foi reconhecido com a judicialização é o do reconhecimento das casas da área urbana de Barra Longa que sofreram impactos com a chegada da lama e com sua retirada, durante as ações de reparação. Com muita pressão e argumentos técnicos os atingidos conseguiram que o CIF aprovasse que a Renova era responsável pela reforma de cerca de 400 moradias em Barra Longa, devido ao impacto das obras, máquinas e caminhões que passaram pelas ruas da cidade.
Depois de algum tempo de expectativa de como esse processo seria operacionalizado, a Renova aceitou pagar uma equipe técnica de confiança dos atingidos para avaliar qual ação deveria ser feita em cada moradia e como; o que depois seria levado para negociação com a Renova. Mas essa equipe nunca foi paga porque no meio desse processo começou-se a judicialização do tema moradia e o juiz nomeou então um perito para fazer vistorias nas casas e ver se de fato elas foram atingidas. Ou seja, houve um retrocesso de 1 ano ou mais na garantia dos direitos dos atingidos. Com o valor gasto para pagar o perito talvez já fosse possível reformar a maioria das casas.
É preciso perguntar como a Fundação Renova consegue fazer uma (não) reparação dessa forma. E para responder a essa pergunta é também preciso lembrar que, na verdade, estamos lidando com empresas: Renova, Vale, Samarco e BHP Billiton. Para empresas o lucro está acima da vida e a prática da reparação é uma forma de manter o poder, o controle, o lucro, a imagem, e não a vida, não a satisfação.
Essa prática da reparação executada pelas empresas multinacionais se baseia no não reconhecimento de todos os atingidos, na violação do direito à participação tentando limitá-lo ao máximo e em algumas fases do conflito, no uso da tática da judicialização, levando as decisões para uma esfera ainda mais distante dos atingidos.
Com toda essa reparação que não está sendo feita e que viola mais direitos, os atingidos se encontram em uma situação de extrema vulnerabilidade psíquica e de renda, onde tendem a aceitar qualquer proposta que a empresa venha fazer a eles. Os que ousam enfrentar a empresa e suas propostas têm que superar a vulnerabilidade e passar por situações de demora, angústia, violação e ameaça. Apenas com muita organização, coletividade, restabelecimento de relações de confiança, argumento, compreensão de seus papéis e luta é possível conquistar o direito a uma reparação integral e justa.
Fontes:
http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/documentos/relatorios-ramboll/pg08_folder_nov2019
Foto: Isis Medeiros