Mutirão de solidariedade constrói a primeira casa para atingidos em Barra Longa
Regiões atingidas pelo rompimento da barragem do Fundão até hoje não receberam nenhuma casa em reassentamentos coletivos da Fundação Renova pelo crime Aproximadamente 5 mil habitantes no município de Barra […]
Publicado 16/10/2019
Regiões atingidas pelo rompimento da barragem do Fundão até hoje não receberam nenhuma casa em reassentamentos coletivos da Fundação Renova pelo crime
Aproximadamente 5 mil habitantes no município de Barra Longa, cidadezinha histórica e ribeirinha próxima a Mariana e Ponte Nova. Erguida pelas mãos do povo, a comunidade carrega desde 1979 a marca de solidariedade e união.
Maria das Graças Lima, conhecida como Gracinha, tem 64 anos e é nascida e criada em Gesteira, área rural de Barra Longa, e tem lembranças marcantes da solidariedade do seu povo. Em 1979 a região sofreu uma enchente que desabrigou toda a comunidade de Gesteira. De acordo com Gracinha, mais de 100 famílias perderam tudo no alagamento.
A comunidade se uniu. Mudamos para um terreno mais alto, lá perto, que foi doado por um fazendeiro daqui que não queria que fossemos embora. O governo deu os materiais de construção e deu cesta básica pra todo mundo que viesse ajudar a construir as casas. Nós construímos tudo de novo, cada dia era um morador aqui que ia lá trabalhar de pedreiro, servente ou pintor. As mulheres carregavam os materiais e os homens colocavam a mão na massa. Construímos as casas de todas as famílias de novo e em um ano estávamos todos morando lá relembrou Gracinha, que diz nunca se esquecer da felicidade e da emoção que foi aquele domingo, 1 de dezembro de 1980, quando a comunidade inteira foi pra lá ver e receber as casas prontas.
Os mutirões de obras e reformas na cidade sempre foram comuns, e são citados por vários moradores. Dessa vez não vai ser diferente, a comunidade se reunirá mais uma vez para construir a primeira casa destinada a uma família atingida pelo rompimento da barragem do Fundão, das mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton, que afetou toda a bacia do rio Doce e o centro urbano da cidade de Barra Longa.
Até hoje, 4 anos depois, não foi construída nenhuma casa em reassentamento coletivo e, para denunciar a falta de interesse das empresas e da Fundação Renova, os atingidos e atingidas organizados no Movimento dos Atingidos por Barragens-MAB irão construir uma casa em apenas 4 meses.
Letícia Oliveira, militante do MAB em Barra Longa, ressalta a importância da construção da casa como símbolo de luta e de enfrentamento contra a Fundação Renova. Essa casa será um símbolo da nossa luta, o símbolo concreto de que o povo tem força e luta pelos seus direitos. Esperamos 4 anos, não dá para esperar mais. A reparação integral dos atingidos e atingidas é urgente. Vamos mostrar com a construção dessa casa que tudo não passa de uma enrolação da Renova e das mineradoras criminosas, finalizou.
Falta de reconhecimento mostra continuidade do crime
A casa que será construída pelas mãos do povo já tem destino certo. A família escolhida para receber é da Yolanda Gouveia, 29, casada com o Douglas Basílio, 29, e seus três filhos: Júlia, 12, Hellem, 7, e Marcelo, 6. Todos são nascidos e criados em Barra Longa, moradores de Volta da Capela, comunidade que teve todas as casas atingidas pela movimentação do maquinário pesado das mineradoras. O bairro fica no alto do município, contornando a entrada da cidade e, como a lama atingiu toda estrada de acesso, o bairro da Yolanda se tornou a única rota para chegar até o centro da cidade naquele período.
Antes do crime, Yolanda prestava serviços domésticos em casas de família e Douglas trabalhava com serviços gerais em obras. Depois, os dois relatam que a maior dificuldade da comunidade é a falta de trabalho, já que hoje todos os empregos ofertados na cidade foram terceirizados pela Fundação Renova. Hoje só o Douglas é empregado.
A casa de Yolanda apresenta rachaduras e tem as janelas quebradas. O maquinário pesado que passou na rua com a retirada da lama de rejeitos balançou a casa e danificou sua estrutura. A janela aqui é solta, caiu na época do crime. Os caminhões passavam aqui e tremia tudo, apontou Yolanda.
A escolha da família de Yolanda e Douglas é simbólica. Desde o rompimento da barragem do Fundão, cerca de 400 famílias no município estão com suas casas danificadas segundo a Assessoria Técnica aos atingidos e atingidas em Barra Longa (AEDAS). Verônica Medeiros, coordenadora operacional do projeto da AEDAS no município, conta que a estrutura da cidade também foi afetada. Há problemas desde o esgoto da cidade até de rachaduras de níveis leves, e algumas que estão caindo, literalmente, na cabeça dos atingidos. Tem quatro anos que eles não têm uma reparação adequada e nem participação nesse processo, afirmou.
Mesmo após 4 anos de luta, a família ainda não foi reconhecida pela Renova como atingida. A grande luta aqui é que a Fundação Renova reconheça que tem um problema estrutural nas moradias. Ela trabalha com um conceito muito reduzido de atingidos e não considera aqueles que não tiveram a lama dentro de casa, sendo que os que tiveram a casa completamente abalada pelo maquinário pesado passando na rua também são e têm o direito a reparação, explica Verônica.
Com solidariedade, o povo constrói
A nova casa será construída no terreno da família, mais distante da cidade e longe de rejeitos. É uma área rural, aonde a lama não chegou nem pelos caminhões das empresas.
Douglas está animado em morar na roça e lembra o movimento na porta de casa e da dificuldade de conviver com a poeira. Aqui na porta chegava a ter trânsito de caminhão e máquina. Era o tempo todo esse vai e vem de maquinário, barulho e terra. Os caminhões passavam e a terra voava toda para dentro de casa. Agora não vai ter mais isso, lá não passa nenhum carrão das empresas afirmou.
As crianças, acostumadas a ter liberdade de brincar na rua, não podiam mais sair de casa. Criança pequena, com esse tanto de gente estranha e carro passando aqui na porta, não podia sair na rua não, era perigoso, lembra o pai. Julia, a filha mais velha, conta que eles estão felizes em ter liberdade pra brincar, seguida do grito animado do Marcelo, o mais novo: vai ter muita coisa pra fazer lá!.
A casa nova tem 117,5m² contando com a varanda. Terá três quartos, uma sala, uma cozinha, um banheiro e uma área de serviço. A parte da casa que Marcelo mais gostou foi o seu quarto, vou ter um quarto só pra mim. Pra Hellem, o quarto que vai dividir com a irmã é o cômodo preferido. Júlia conta que a melhor parte da casa vai ser a cozinha porque lá tem comida!, animou-se.
O lote da família tem plantações de couve, cebolinha, mostarda, alface, pé de limão, mexerica e tomate. Além do espaço, a família vai ter a oportunidade de produzir o próprio alimento no quintal de casa.
O projeto da casa foi feito pelo GEPSA, Grupo de Estudos e Pesquisa Socioambiental da UFOP, que atua na defesa dos direitos das pessoas atingidas para garantir a reparação integral dos danos sofridos pelos atingidos com o crime. Tatiana Ribeiro é professora de direito na universidade e coordenadora do GEPSA. Junto com Observatório do Reassentamento: rede de ações e apoio aos atingidos nos municípios de Mariana e Barra Longa, coordenado pela professora Arquitetura e Urbanismo Karine Gonçalves, os grupos assessoram tecnicamente a construção da casa.
De acordo com Tatiana, a parceria com o MAB vem de longa data, com o acompanhamento das consequências do crime, na elaboração dos planos de defesa e garantia de direitos dos atingidos. Fazemos um projeto com o povo, e não para e nem sobre eles. Não estudamos o povo e não elaboramos nada para eles. É sempre em conjunto, afirmou.
Atingidos realizam Jornada de Lutas
O crime da Vale, Samarco e BHP Billiton na bacia do rio Doce completa 4 anos no dia 5 de novembro e até hoje os atingidos não tiveram uma reparação adequada, convivendo com problemas de saúde, falta de trabalho, contaminação da água e diversas outras consequências.
A construção da casa é parte da Jornada de Luta dos Atingidos: A Vale Destrói O Povo Constrói, realizada pelos atingidos e atingidas organizados no MAB, com o objetivo de denunciar os crimes dos rompimentos das barragens de Fundão em Mariana, e Córrego do Feijão em Brumadinho.
A responsabilidade de custeio de toda a reparação é das empresas criminosas, mas uma reparação de fato integral só é possível com o protagonismo da população atingida. A construção da casa é uma ação de enfrentamento a Renova e às empresas, por isso vamos fazer com campanhas de arrecadação, mostrando que a solidariedade tem força e que não é difícil construir casas. O que falta é vontade por parte dessas empresas, afirma Letícia, do MAB.
A arrecadação já começou, com caixinhas espalhadas por todo o país que levam o lema Doe um Tijolo, e pela plataforma online de financiamento coletivo Catarse. A campanha pode ser encontrada no link: catarse.me/opovoconstroi.
A Jornada de Luta dos Atingidos segue até janeiro de 2020, com marchas e eventos de luta em denúncia aos 4 anos do crime na bacia do rio Doce e 1 ano do crime no rio Paraopeba.