Camponeses se formam em direito com desafio de mudar a cara da Justiça
*Via Brasil De Fato Historicamente elitista e conservador, o sistema judicial brasileiro é marcado pela falta de representação popular e sua frequente atuação para criminalizar movimentos populares. Os julgamentos controversos que se seguiram à Operação Lava […]
Publicado 23/07/2018
*Via Brasil De Fato
Historicamente elitista e conservador, o sistema judicial brasileiro é marcado pela falta de representação popular e sua frequente atuação para criminalizar movimentos populares. Os julgamentos controversos que se seguiram à Operação Lava Jato, marcados pela perseguição a lideranças importantes da esquerda, como o ex-ministro José Dirceu e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mancharam ainda mais a reputação do Judiciário.
É neste contexto que 37 assentados concluíram a graduação em direito, graças ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), com o sonho de atuarem como advogados populares ou de seguir a magistratura. A colação de grau da turma, terceira a se formar no curso pelo programa, ocorre neste sábado (21) na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia.
Um dos formandos é Aldenir Gomes da Silva, de 29 anos, que cresceu no Assentamento Palmares II, no município de Nina Rodrigues, no norte no Maranhão. Agora, graduado em direito, ele avalia o desafio atuar neste contexto.
“A nossa turma se forma em um cenário muito emblemático, muito difícil e de muitas contradições, de criminalização dos movimentos sociais. Para gente, é um desafio muito grande. A gente vê a forma como está sendo tratada nossa Constituição, o direito trabalhista A gente estuda diante de uma contradição muito grande no campo jurídico”, afirma.
Aldenir relata que, quando criança, o direito nunca esteve nos seus planos por causa da elitização do curso.
“Tive um certo anseio [de fazer o curso], mas o direito chegou de uma maneira inusitada até porque eu considerava uma questão distante. Estudar direito para filho de assentados, no campo, é uma dificuldade muito grande”, conta o estudante. “É um sonho, mas é um sonho coletivo. É um sonho pessoal, da família, mas, sobretudo, coletivo da classe trabalhadora”.
Com trajetória semelhante, a estudante Naiara Santos, de 26 anos, afirma que a possibilidade de cursar direito era, para ela, algo distante. Ela é do Assentamento Vale da Conquista, no município de Sobradinho (BA), e é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
“Eu estava na expectativa desse curso. Desde o momento que surgiram as primeiras ideias da turma na Bahia, eu estava na espera”, conta. Ela pretende seguir advogando e, talvez, atuar na promotoria.
“Nós, enquanto camponeses, trabalhadores rurais e militantes das nossas organizações, temos esse papel de estarmos aqui amanhã [dia 21 de julho] recebendo o diploma de bacharel de direito com esse compromisso de continuar na militância e prosseguir com a luta”
Perfil dos estudantes
A primeira turma graduada em direito pelo Pronera formou-se em 2012 na Universidade Federal de Goiás (UFG), e, a segunda, na Universidade Estadual da Bahia (UNEB), em 2017.
Além da turma que finaliza o curso neste mês na UEFS, outras quatro turmas de direito pelo Pronera estão em andamento no país: na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e uma outra turma na UFG.
Segundo o último Censo Educacional, realizado em 2016 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o direito é o curso com o maior número de estudantes no Brasil, com mais de 850 mil alunos matriculados.
Os estudantes que integram a terceira turma vêm de 11 estados e representam sete movimentos populares: MST, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento das Comunidades Populares (MCP), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento de Luta Camponesa (MLC), Pastoral Rural e Via Campesina.
Dos 40 alunos que iniciaram o curso, apenas três não vão se formar – uma taxa de desistência de 7,5%. A média nacional de evasão em direito é de 54,2%, segundo o Inep. Ou seja, mais da metade dos matriculados no curso desistem ou trocam de curso durante a graduação.
Além disso, 13 dos 37 alunos já foram aprovados no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no primeiro semestre deste ano, antes mesmo da conclusão do curso.
Cortes orçamentários
O programa passou por uma desestruturação, resultado da Emenda Constitucional 95, que congelou a taxa de investimentos públicos por 20 anos.
Em 2015, os recursos para o Pronera somavam R$ 32,5 milhões, enquanto os recursos em 2017 caíram para R$14,5 milhões. Já em 2018, o orçamento destinou apenas R$ 7,7 milhões ao programa uma queda de 76%, quando comparado a 2015.
Os cortes, segundo a professora de direito da UEFS, Flávia Pita, pode impactar as outras 14,5 mil pessoas que aguardam por cursos que estavam por ser implementados desde a Educação de Jovens e Adultos (EJA) até a pós-graduação.
“Desde o golpe, o Pronera tem sofrido uma política de esvaziamento. O risco de acabarem com a política, na minha opinião, é grande”, lamenta. Pita relata que há uma baixa desistência no curso e aprovação significativa no exame da OAB, mesmo com todas as dificuldades orçamentárias.
“São todos estudantes que têm uma história de formação escolar atípica para estudantes de direito: vieram de escolas públicas, são trabalhadores rurais. Tem desde caminhoneiros a agricultor na turma”, afirma a professora.
“Os trabalhos monográficos são de uma qualidade impressionante; eles conseguiram produzir muita coisa para publicação. A gente está lançado um livro só de artigos de estudantes”, conta.
É o que também pontua Aldenir: “embora o esfacelamento das políticas públicas e dos direitos sociais, que historicamente foram conquistados e estão sendo esmagados, é também um momento de reflexão para gente pensar que a gente precisa, mais do que nunca, se empoderar e nos apropriar desse conhecimento para gente resistir”, diz.
O que é o Pronera
O programa completa 20 anos em 2018. Foi implementado em abril de 1998, após uma extensa luta dos movimentos populares para ampliar o acesso de beneficiários da reforma agrária à educação. Desde 2001, o programa está vinculado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Flávia Pita, que também é procuradora do estado da Bahia, reitera a importância da ocupação institucional e das universidades.
“Hoje, está cada vez mais público para o Brasil o quanto o direito é um espaço de produção de hegemonia e manter as classes populares longe desse espaço é importante. O Ministério Público entrou com uma ação contra a existência da turma de Goiás. É uma experiência que até hoje encontra resistência”, diz Flávia.
Até 2016, o Pronera havia formado 180 mil alunos de áreas da Reforma Agrária, sendo cerca de 170 mil formados pela EJA, nove mil formados no nível médio. Mais de cinco mil alunos que concluíram o ensino superior e 1.765 especialistas formados pelo programa, segundo dados do Incra.
*de Rute Pina, do Brasil de Fato (Edição: Diego Sartorato)