Contradições

Parece claro que não se aprendeu a lição do golpe e que, provavelmente, a aliança, novamente, se fará por cima, com setores economicamente fortes e, não, com o povo. Uma […]

Parece claro que não se aprendeu a lição do golpe e que, provavelmente, a aliança, novamente, se fará por cima, com setores economicamente fortes e, não, com o povo. Uma solução que pode ser exitosa do ponto de vista eleitoral, mas, só por si, não constrói soberania

Por Antônio Claret Fernandes*

Após enfrentar o trânsito infernal de BH, Sofia avista o Palácio da Liberdade, todo cercado de grades. Não há força militar ostensiva, mas a angélica paz guarda uma guerra de bastidores.  Aparentemente há apenas uma policial ‘passeando’ no jardim e um carro de polícia na Praça, mas um passo fora da ordem é suficiente para surgir um batalhão. O Estado de Direito, independente da vontade dos governos, não tolera a obstrução do sistema, ao qual serve, e responde com violência.

Orientada, Sofia vai pela direita do prédio à procura de estacionamento. Repara aqui e ali. Tudo lotado! Exceto uma única vaga, conta exata do veículo. Ela segue paralela ao carro da frente, dá ré uma, duas, três vezes. O Flanelinha chega e oferece ajuda, pedindo o volante, mas, surpreso com um ‘não’ firme da motorista, contenta-se em acenar com a mão. E o carro se encaixa naquele espaço exíguo.

Da frente do Palácio com um grupo de militantes, Sofia localiza os demais, por telefone, do lado esquerdo do prédio. O portão é minúsculo, acoplado a um quartinho com uma policial. Lá dentro, quase uma dúzia de homens de terno, espalhados, descontraídos, formando grupos de dois ou três.

Um deles chega ao portão. Por menos de um dedo de prosa, coloca todos para dentro. Ele sabe que o Governador os espera! Daquela porta dos fundos vão pelo jardim, entre os homens de terno, de sorrisos largos, guiados por alguém do governo, até à entrada do Palácio. Noutra porta, um homem confere o nome de cada um na lista, sem olhar documento, e, só após esse obstáculo, estão, efetivamente, dentro do Palácio. Duas mulheres apontam a escada redonda de acesso ao segundo andar. Alguns querem ir ao banheiro antes da reunião e são prontamente atendidos e acompanhados, aos fundos. Outros já vão subindo, sobre o tapete vermelho, bem fixado aos degraus, desde o primeiro até o último, na sala de espera, ampla, com mesa ao centro e cadeiras no entorno, confortáveis, douradas, com ar de relíquia antiga. A pintura do teto lembra Apolo, deus das artes, da música, da profecia, da verdade, da poesia, da perfeição. Apolo, filho de Zeus e de Leto, deusa do anoitecer, tem uma peculiaridade, podendo agir positiva e negativamente, criando pragas, doenças e a sua cura. Ele carrega a mesmíssima contradição dos humanos mortais. Nas paredes, em candelabros, há lâmpadas acesas, imitando velas. Da sacada da frente se avista toda a Praça da Liberdade, a qual,  a despeito do nome, foi palco de prepotências históricas contra os movimentos populares.

Por todo o Palácio, em todos os cantos, nas coisas e nas pessoas, nenhum sinal de crise financeira.

Mulher franzina aproxima-se de cada um e, com todo o cuidado do mundo, avisa que os celulares serão recolhidos. Os militantes se entreolham. Secretários e militantes se apressam em digitar uma coisa e outra, alguns pregam o fone ao ouvido, mas, finalmente, todos sabem que precisam deixar o aparelho. Eles, os celulares, enquanto extensão de seus donos, recebem um trato mais que especial. Cuidadosamente colocados em saquinhos de plástico, um a um, já com o nome do seu proprietário, tirado da lista enviada com antecedência. Depois depositados num tabuleiro, com vários compartimentos. Por fim, juntamente com os convidados, são carregados pela mulher, feito andor em procissão, e depositados em local apropriado. Seus donos vão passando, alguns ainda dão uma última olhada para o aparelho, quase fazem vênia, e seguem.

A sala de reuniões, logo adiante, é um espaço amplo, com imensa mesa ao centro, levemente arredondada nas extremidades; numa das cabeceiras, perto de parede inteira de vidro, fica uma cadeira diferenciada, maior, reservada ao Governador.

Sofia, reparando cada detalhe, desde a chegada ao Palácio até ali, reflete que os governos precisam desses rituais, que lhes confiram graça e poder. Sem eles, são ridículos reis nus, tamanha a sua fragilidade real frente aos impérios econômicos e à força potencial do povo. A perfeição externa, tudo medido, é sintoma de imperfeições. A atenção desmedida é sinal da vulnerabilidade pela vontade impossível de controle completo.

O ponto alto desse rito-mistério é a chegada do Governador. Ele entra por uma portinha, ao lado da parede de vidro, através da qual se podem ver os convidados, no reflexo da imagem. Cumprimenta pessoa por pessoa, pelo nome, colocado no papel, à frente do assento previamente determinado. As pessoas do governo, todas elas, levantam-se à passagem do Governador e abrem-se em sorriso, como parte do ofício. Um dos secretários leva reprimenda, ainda que de brincadeira: ‘antes me chamavas de companheiro, agora me chamas de excelência!?’. Risos. Os militantes, mais livres, cumprimentam o Governador, de pé ou assentados.

Imediatamente à acomodação dos presentes, iniciam-se comestíveis, um pratinho com três pãezinhos de queijo e três minúsculos pedaços de bolo, com café e água.

Um militante faz a abertura da reunião, fala firme com clareza de rumo, sem ser descortês. Diz que o Movimento apoiou a eleição do Governador, através de aglutinação de forças em torno do Quem Luta Educa. Afirma que o governo está muito aquém das expectativas da classe trabalhadora. Reconhece um que outro ponto localizado de avanço. E, sem chantagem, avisa que a postura frente ao Governo, ora em diante, vai depender da sua seriedade ou não no trato com o povo organizado. Lembra ainda, embora todos o soubessem, Jornada de luta do Movimento, uma primeira edição entre 13 a 15 de março e uma segunda edição entre 30 de março a 1º de abril.  A ocupação da CEMIG está latente na cabeça de todo mundo, pois foi ela que forçou aquela reunião. Luta não pede licença porque tem forças para abrir portas.

A militante expõe a pauta, ponto a ponto, lembrando pendências históricas em hidrelétricas, nos conflitos em terras devolutas griladas por empresas e fazendeiros; defende a necessidade de aprovação do PEABE – Projeto de Lei que trata da Política Estadual dos Atingidos por Barragens, parado há mais de um ano na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. O Movimento reivindica desapropriação de área para assentamento de famílias atingidas pelo crime da Samarco, indignado com o desplante do governo que decreta desapropriação de terras de famílias atingidas para construção de dique em Bento Rodrigues. E repudia a Fundação Renova, crime em roupa de filantropia, artimanha para deixar o criminoso ‘cuidar’ da vítima, e afirma que a posição do governo deve ser a defesa e a proteção aos atingidos.

 Membros do primeiro escalão do governo e do baixo clero, presentes ali, em geral habituados aos discursos de seda, olham assustados, ora para o militante ora para o Governador, que folheia a pauta do Movimento, aparentemente tranquilo. O diretor da CEMIG despista sua surpresa, reparando o teto ou mirando lugar nenhum.

O Governador também surpreende. Contrariando seu jeito falante, ouve por quase duas horas e, após, em dez minutos, dá seu recado, endereçando, com habilidade, os pontos de pauta e, num tom político-eleitoral,  faz sua leitura do golpe em curso no Brasil, uma ruptura democrática, e defende a retomada do desenvolvimentismo. Seu pensamento pode ser sintetizado na sua afirmação: ‘ a solução tem apenas quatro letras’. Todos entendem, embora a maioria da militância não concorde. Parece claro que não se aprendeu a lição do golpe e que, provavelmente, a aliança, novamente, se fará por cima, com setores economicamente fortes e, não, com o povo. Uma solução que pode ser exitosa do ponto de vista eleitoral, mas, só por si, não constrói soberania.

Encerrada a reunião, o Governador sai rápido na mesma porta de entrada, acompanhado de dois ou três secretários que ainda tentam lhe falar algo. Formam-se pequenos grupos, com aquele zum-zum-zum. No meio político, corredores são, às vezes, mais importantes que reuniões. Pouco a pouco, os participantes vão se dispersando, passando quase enfileirados pela espécie de altar onde se encontram os celulares. Recebem o aparelho na mão, ganham um sorriso da secretária e seguem, escada abaixo, para casa ou para outras reuniões do dia. O grupo de militantes que está com Sofia vai rumo ao carro, encaixado num minúsculo espaço. Na grama, do lado, uma policial, aparentemente ‘passeando’, mostra-se solidária, oferecendo seus préstimos, ajudando a motorista com acenos. Após a manobra e o retorno, do outro lado da rua, vê-se a policial entrando no carro, estacionado atrás, saindo tranquila, com espaço de sobra.

*Claret Fernandes é militante do Movimento dos Atingidos por Barragens e padre da Arquidiocese de Mariana (MG)

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