Arpilleras: a costura como ferramenta política
Sediada no Memorial da América Latina, a mostra Arpilleras: bordando a resistência reúne peças de mulheres afetadas por conflitos de vários países do mundo Do Brasil de Fato Provavelmente você nunca ouviu […]
Publicado 01/10/2015
Sediada no Memorial da América Latina, a mostra Arpilleras: bordando a resistência reúne peças de mulheres afetadas por conflitos de vários países do mundo
Do Brasil de Fato
Provavelmente você nunca ouviu falar em Elaine Souza. Negra, pobre e atingida por barragem. Uma história invisível como muitas outras de pessoas que lutam contra as constantes violações de direitos no Brasil. Uma história calada. Tímida. Sufocada. Até mesmo pelo machismo discursivo dos movimentos sociais.
Entretanto, a militante precisava tecer os fios da memória e construir sua história. Contar ao mundo as dores e alegrias de sua luta. Não apenas no combate às barreiras de gênero, mas também ao enfrentar um grande inimigo que transformou completamente sua vida e comunidade.
Inaugurada há nove anos, a Usina Hidrelétrica Aimorés foi construída sobre o leito do rio Doce, por meio de uma parceria entre a Vale e a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), e atingiu milhares de pessoas na região norte de Minas Gerais, incluindo Elaine e sua família.
Seu município, Itueta, foi inundado pelo lago da barragem. A população rural, localizada na região norte, ficou isolada. Nós, do interior, perdemos a estrada que passava na beira do rio e isso aumentou em trinta quilômetros o percurso para chegar à cidade, recorda Elaine.
O resultado do progresso energético foi aterrador. De acordo com o relatório do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), que analisou durante quatro anos as denúncias de violações na construção de barragens no Brasil (2006-2010), onze direitos humanos foram infringidos pela hidrelétrica. Os relatos incluem depressão coletiva e uma série de tentativas de suicídio em decorrência da usina.
Mas, agora, histórias de resistência como a de Elaine saem da invisibilidade. Reunidas no Encontro Regional de Mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em novembro do ano passado, no município de Resplendor (MG), a mineira e outras atingidas pela hidrelétrica de Aimorés se utilizaram de uma ferramenta inusitada para contar suas dores e potencializar a resistência: bordar.
Quebrando barreiras
No dia 22 de setembro, Elaine chegou cedo ao Terminal Rodoviário Tietê, vindo para a exposição que seria lançada três dias depois. Entre malas, carrinhos e ônibus, a mineira acabava de cumprir mais um desafio: conhecer sozinha a maior metrópole do país. Mas não era só isso. Com o olhar curioso, algumas vezes preocupado, Elaine se encaminhou apressada para a Barra Funda, na região Oeste da capital paulista.
Eu vim até aqui representar milhares de atingidas que ficaram na minha região e em outras espalhadas pelo Brasil. Eu estou carregando comigo essa responsabilidade, afirmou.
Na mochila, a atingida trazia com cuidado sua própria terra costurada por diversas mãos. Durante uma oficina, nós resgatamos a técnica de costura das arpilleras, que foi utilizada pelas mulheres chilenas como forma de denúncia durante a ditadura militar, para também denunciar os nossos carrascos, rememorou.
O bordado Epidemia Psicosocial, produzido por uma técnica em que a costura é elemento de reflexão política e social, foi uma das escolhidas para representar as violações de direitos humanos cometidas contra as populações atingidas por barragens, em especial às mulheres.
Bordado e política?
Talvez essa seja a exposição de arpilleras mais bonita que eu já vi, afirmou na última sexta-feira (25) a curadora internacional da exposição Conflict Textiles, que reúne arpilleras produzidas em vários países do mundo.
Roberta Bacic entrou em contato com as arpilleras ainda durante os anos de terror vividos em seu país. No período da ditadura chilena, que ocorreu entre os anos de 1973 e 1990, Roberta observou como a costura se contrapôs à brutalidade comandada pelo general Augusto Pinochet. As mulheres com parentes desaparecidos se reuniam, geralmente na periferia de Santiago, para costurar relatos das violações que aconteciam no Chile. Muitas dessas peças foram enviadas à Europa e serviram como uma das principais armas de denúncia ao regime ditatorial.
Depois de se envolver em diversas atividades de resgate à memória, incluindo a Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação (1993-1996), Roberta decidiu exportar a técnica das arpilleras para outros lugares do mundo.
No Brasil, esta técnica foi resgatada em parceria com o MAB, que organizou, desde 2013, mais de 100 oficinas com a participação de 900 mulheres atingidas das cinco regiões do país. Para a integrante da coordenação nacional do MAB, Tchenna Maso, esta é uma transgressão do papel da costura. Utilizamos uma atividade corriqueira na vida das mulheres para aperfeiçoar um método de trabalho feminista e popular nas áreas atingidas por barragens, afirmou.
Todo esse trabalho desenvolvido durante esses dois anos faz parte da exposição Arpilleras: bordando a resistência, que reúne 25 peças produzidas pelas atingidas brasileiras e 12 costuradas por mulheres de seis países, envolvidas em conflitos policiais, desaparecimentos políticos, encarceramento, imigração, minas terrestres ou lutas indígenas.
A exposição, lançada no dia 25 de setembro, seguirá até o dia 25 de outubro no Salão de Atos Tiradentes, no Memorial da América Latina. Durante a programação, também está previsto a exibição de filmes, debates e oficinas de costura.