Premiada por ativismo, Berta Cáceres enfrenta corporações e governo em defesa da terra em Honduras
No país com mais assassinatos de ativistas ambientais no último ano, Cáceres atua em prol dos rios, das florestas e de comunidades indígenas: ‘nossas lutas demonstram que outras formas de […]
Publicado 24/06/2015
No país com mais assassinatos de ativistas ambientais no último ano, Cáceres atua em prol dos rios, das florestas e de comunidades indígenas: ‘nossas lutas demonstram que outras formas de vida são possíveis, protegendo o planeta’
Escrita por Maribel Hernández e publicada originalmente no site do jornal espanhol El Diario.
Tradução: Henrique Mendes, do Ópera Mundi
Foto: Goldman Environmental Prize / Divulgação
Para o povo lenca de Honduras, o rio Gualcarque é sagrado. Um elemento fundamental de seu território e sua forma de vida que lhes garante soberania alimentar, medicamentos e espiritualidade. Por isso, quando em 2006 membros da comunidade de Río Blanco chegaram ao COPINH (Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras), denunciando a entrada de máquinas em suas terras, Berta Cáceres, coordenadora geral do órgão e uma mulher com anos de defesa dos direitos ambientais, intuiu que se aproximavam anos de luta. O que talvez não imaginava, na ocasião, era que acabariam conseguindo expulsar do território a maior empresa construtora de represas do mundo, a chinesa Sinohydro.
Cáceres recebeu, no fim de abril desse ano, o prêmio Goldman, conhecido como Nobel do Meio Ambiente. “O que nos inspira não são os prêmios, mas os princípios. Aqui, com reconhecimento ou sem, lutamos e vamos continuar lutando”, afirma, na cidade hondurenha de Tela.
A perseguição e a violência contra os que defendem o meio ambiente são uma constante em países onde empresas transnacionais de extração, hidroelétricas ou do setor agroindustrial têm interesses, muitas vezes com a conivência dos poderes político e financeiro. Segundo o último informe da organização Global Witness, em 2014 foram assassinados 116 ativistas ambientais em 17 países, cerca de 20% mais do que em 2013. Mais de duas pessoas morrem por semana no mundo todo por defender suas terras, seus rios ou seus bosques diante da exploração. A investigação “Quantos mais?” indica Honduras como o país mais perigoso para estes ativistas. Entre as pessoas assassinadas, 40% são membros de povos indígenas, como o povo lenca, ao qual pertence Berta Cáceres.
“Em Honduras, vivemos uma situação trágica. À medida que avançaram os grandes investimentos de capital internacional, com empresas vinculadas aos setores econômico, político e militar do país, as políticas neoliberais extrativistas provocaram também um aumento da repressão, criminalização e remoção das comunidades”, explica Cáceres, que denuncia como em seu país “o aparato repressor armado protege os interesses destas empresas”.
Não é casual, por exemplo, o auge das empresas de segurança privada em Honduras. Segundo o Escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU (OHCHR), o número de guardas de segurança privada no país é cinco vezes maior do que o de policiais, existem cerca de 700 empresas do tipo em operação e a maioria delas pertence a antigos membros da polícia ou do exército de alta patente.
Os que se opõem a estes megaprojetos são duramente reprimidos, diz a ativista. “Nós, que rechaçamos estes projetos, somos ameaçados de morte; ameaçam nossas vidas, nossa integridade física e emocional, a de nossas famílias e comunidades, querem negar nossa existência como povos originários. Vivemos em um clima de impunidade e de administração de justiça nula”, afirma.
Cáceres perdeu vários companheiros. Moisés Durón Sánchez, de 54 anos, foi “um homem que lutou pelo território e foi assassinado por matadores de aluguel recentemente”, conta. Ou Tomás García foi assassinado a tiros pelo exército hondurenho durante uma manifestação contra a represa de Agua Zarca em 2013. Ou William Jacobo Rodríguez, por cuja morte e tortura foram acusados os policiais que protegiam o projeto hidroelétrico. O corpo do irmão deste último, Maycol Rodríguez, um menino de 14 anos que se dedicava ao cultivo de milho em terras visadas pela empresa, apareceu na água com sinais de tortura.
O uso ilícito da força por parte dos órgãos de segurança do Estado hondurenho e a vinculação de membros da polícia e do exército em casos de intimidação, ameaças e supostos assassinatos de defensores do meio ambiente foi documentado por organizações como a Human Rights Watch e a Front Line Defenders.
“Neste país impune, responsável por graves violações de direitos humanos, nós, que lutamos pela terra, pela água, pelo território e pela vida, para que não caiam em mãos privadas e sejam destruídos, colocamos nossas vidas em risco. É muito fácil que matem alguém por aqui. O custo que pagamos é muito alto. Mas o mais importante é que temos uma força que vêm de nossos ancestrais, herança de milhares de anos, da qual estamos orgulhosos. Esse é o nosso alimento e nossa convicção na hora de lutar”, destaca a ganhadora do Goldman.
Berta Cáceres orquestrou a campanha contra o projeto de construção da represa de Agua Zarca no rio Gualcarque, uma concessão obtida pela empresa hondurenha DESA (Desarrollos Energéticos SA), que, por sua vez, subcontratou o grupo chinês Sinohydro. Entre os financiadores da empresa estavam a Corporação Financeira Internacional (IFC), o braço financeiro do Banco Mundial para o setor privado em países em desenvolvimento, e o Banco Holandês de Desenvolvimento (FMO). O processo foi levado adiante em violação do Acordo 169 da OIT, que exige o conhecimento prévio e informado e a consulta junto aos povos indígenas e originários.
Viagens a Tegucigalpa, cartas, queixas, protestos, denúncias a organismos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos… “Fizemos um trabalho de base muito forte, um grande esforço coletivo, um processo muito debatido e informado. Somente em 2013 realizamos mais de 150 assembleias indígenas”. O ano de 2013 marcou um ponto de ruptura. Em abril, bloquearam uma das rodovias para impedir o acesso ao território. Permaneceram ali por 21 meses, estrategicamente organizados, com um sistema de rotatividade e alertas, resistindo a agressões e ataques. Em julho de 2013, após a morte de Tomás García, a Sinohydro se retirou do projeto e rompeu seu contrato com a DESA. Mais tarde, o IFC anunciou a retirada de seus fundos. A construção da represa foi paralisada.
“Foi uma conquista importante, conseguimos expulsar a maior construtora de represas do mundo e deter toda a estratégia de repressão e criminalização contra nós. Mas a concessão continua. Até o momento, não foi fácil para a DESA contratar uma empresa terceirizada, o IFC retirou seu financiamento, mas o FMO, uma das organizações financeiras mais agressivas, ainda está envolvido. Querem reativar o projeto em outra área do mesmo rio, e a militarização continua”, alerta Cáceres, que insiste em destacar o valor coletivo da luta e a participação ativa das mulheres lencas.
Para a ativista, a defesa dos direitos ambientais se soma ao fato de ser mulher. O desafio é duplo. “Não é fácil ser mulher e dirigir o processo de resistência indígena. Em uma sociedade incrivelmente patriarcal, as mulheres estão muito expostas. Temos que enfrentar circunstâncias de muito risco, campanhas machistas e misóginas. Esta é uma das coisas que mais pode pesar no abandono da luta. Nem tanto a transnacional, mas a agressão machista sentida por todos os lados.
Ainda assim, ela diz nunca ter pensado em desistir, apesar dos esforços do governo hondurenho para criminalizá-la. Esta é uma estratégia habitual contra os defensores do meio ambiente. A ex-relatora especial da ONU para os defensores dos direitos humanos, Margaret Sekaggya, advertiu em um informe sobre Honduras que os que “denunciam problemas ambientais […] foram qualificados como membros da resistência, guerrilheiros, terroristas, opositores políticos ou delinquentes”. A Global Witness alerta sobre o uso, por parte de alguns governos, de legislação antiterrorista contra os ativistas, que passam a ser catalogados como “inimigos do Estado”.
Berta foi acusada de “ser um perigo para a segurança do Estado” ou de incitar outras pessoas a cometer delitos. Foi detida em várias ocasiões e, em setembro de 2013, emitiram um mandado de prisão contra ela. Seu caso foi recebido pela Anistia Internacional, que lançou uma ação urgente em sua defesa. Durante alguns meses, viveu em semiclandestinidade e duas de suas filhas tiveram que abandonar o país. “Tive que fazer muitas coisas para me proteger. Neste país, é preciso inventar, senão não se sobrevive, e isso só é possível com o auxílio da comunidade. Eu poderia ter ido embora, pedido asilo político, mas o que quero é ficar aqui, onde posso lutar”.
A luta é também pela visibilidade do que está acontecendo nos territórios indígenas e, nisso, acredita Cáceres, tudo aquilo pelo que passou e o prêmio recebido ajudam. “Nossas lutas são desvalorizadas e se tornam invisíveis porque, para quem tem o poder político e econômico, são um mau exemplo. Elas inspiram a luta emancipatória dos povos e demonstram que outras formas de vida são possíveis, protegendo o planeta. Isso é contrário ao projeto de dominação hegemônica que se impõe no mundo todo e que pretende saquear os recursos estratégicos dos povos”, denuncia.
Cáceres reconhece que enfrentam um inimigo forte. No momento, por exemplo, estão trabalhando contra 50 projetos de geração de energia “outorgados ilegal e ilegitimamente”, aponta. “Há 43 projetos hidrelétricos que privatizam rios e 7 projetos eólicos concedidos a grandes transnacionais. Só em nossa área temos a ameaça de mais de 100 concessões de mineração no contexto da entrega mais brutal que já houve neste país. Estão aprovando mais de 870 concessões de mineração, o Estado já concedeu mais de 30% de seu território. Isso significa que a crise e o conflito pela água tendem a aumentar, bem como a militarização. O trabalho é infinito”.
Neste sentido, e levando em conta sua experiência, ela envia uma mensagem aos líderes mundiais que vão se reunir no fim do ano em Paris para a Conferência sobre o Clima, a COP21: “Chega de falar e falar. Queremos que ajam e isso começa com o reconhecimento de que a destruição ambiental e as mudanças climáticas têm razões estruturais. A grande causa é o capitalismo e, enquanto não se abandone este sistema depredador, continuarão fazendo reuniões deste tipo até a total destruição do planeta”.