A caneta e a rua

Em tempos de tesoura neoliberal e de canetadas que assinam o retrocesso da classe trabalhadora, uma simples caneta pode redesenhar o sonho, a utopia, a unidade de classe, e reescrever […]

Em tempos de tesoura neoliberal e de canetadas que assinam o retrocesso da classe trabalhadora, uma simples caneta pode redesenhar o sonho, a utopia, a unidade de classe, e reescrever a história, com o povo na Rua.

Por Antônio Claret Fernandes

A chuva cai fina na capital mineira e os ônibus, encostados na Praça da Estação desde alta madrugada, servem de proteção contra o frio. São 29 de maio. Há pessoas das várias regiões de Minas Gerais para o Dia Nacional de Luta a favor dos direitos da classe trabalhadora.

O lanche da manhã, um todinho com dois pãezinhos embrulhados num plástico, chega depois das sete horas. Uma boa refeição para quem já sente o estômago roncar.

O caminhão de som, perto da fila de ônibus, começa a animar o povo. Alternam-se falas e músicas. Apesar do frio, o clima vai se aquecendo, e, em poucos instantes, muitas dezenas de pessoas estão aglomeradas, animadas, dispostas à luta.  Povo é povo! Quando organizado, tem uma capacidade infinita de superar desafios.

Inicia-se a Marcha! A orientação são três filas, mas não é fácil. A chuva nas costas incomoda e desconcentra um e outro. Alguns vão caminhando e buscam acomodar-se sob um puxado atrás do carro de som. Os animadores gritam ‘Vamos ocupar o Incra!’. Mas na Afonso Pena, na altura do endereço 1316, a Marcha quebra-se e os manifestantes, aos gritos, em batucada, ocupam o Ministério da Fazenda.

Os  manifestantes se distribuem, dentro e fora do Ministério. Todos, agora, bem protegidos da chuva, pois o prédio, de nove andares, tem um espaço grande e coberto, do lado de fora, com grandes pilastras, que vai até à avenida.

Lá dentro, dá-se início a um diálogo com o chefe dos seguranças, que aciona a Polícia. Em poucos minutos, chega o Comandante com um pequeno grupo de milicos (O número maior fica no Incra, vigiando o prédio por causa das ameaças). Ele entra, mas o Movimento decide que as negociações se seguirão do lado de fora. Fica irritado, diz isso e aquilo, exclama ‘negativo!’, mas acaba cedendo.

Um fotógrafo parece querer cavar uma confusão. De boné, blusa grená, rota do tempo, máquina em punho, apetrechos na cintura, fica ali, tirando uma foto e outra, num momento de cantoria. Atraída por aquela movimentação, uma mulher que passa pela Afonso Pena, aparentemente alcoolizada, entra na roda, dança, depois se senta ao chão, no meio da roda, e fica ali, remexendo a bolsa. O fotógrafo movimenta-se rápido, abaixa-se, depois se ajoelha, coloca a máquina no chão, escolhe a melhor pose. Seu entusiasmo gera desconfiança! Nossos seguranças lhe chamam a atenção, ele se exalta, dão-se uns minutos de bate-boca, depois o fotógrafo se afasta, fica por ali mais um pouco e some.

Aquele incidente contornado anima, ainda mais, o povo. Mulheres, artistas populares, cantam versos. O Levante Popular da Juventude responde na batucada:

‘É pra mudar, com essa política não dá, Constituinte já’;

‘ Ah, ah, ah, levante-se!’;

‘Agora virou moda a crise internacional, demitindo todo mundo pra playboy não passar mal’.

Às onze horas e vinte minutos, professores municipais em greve passam pela Afonso Pena, em caminhada. A notícia é que a Capital está toda parada: o metrô não funciona, diversos grupos se manifestam em vários pontos da cidade, o trânsito é um caos. O que mais incomoda o sistema, porém, é a ocupação do Ministério da Fazenda, a qual cria uma tensão para dentro do Governo nos níveis federal e estadual, acertando-lhe o ponto fraco dos ajustes neoliberais.

Animadores e militantes, em suas falas, vão lembrando a razão da luta às pessoas que transitam ali, e aos manifestantes: foram retirados 53% dos recursos destinados à Agricultura Familiar e à Reforma Agrária, a qual alimenta, hoje, 75% dos brasileiros; a tesoura alcança estudantes e professores das universidades;  tirar dinheiro do trabalhador e passar para os enricados, isso é o superávit primário; o Brasil tem hoje 12 milhões de trabalhadores terceirizados, modalidade de trabalho precarizada e, com a aprovação da PL 4330, pelo menos mais 30 milhões podem sofrer terceirização; a Contrarreforma política, com financiamento privado de Campanha, fragiliza, ainda mais, a nossa democracia.

Em tom zombeteiro, um manifestante afirma que Dilma estaria com Torcicolo de tanto olhar só pra Direita.

No início da tarde, todo o extenso saguão do Ministério se torna uma praça de alimentação, com crianças, mulheres, homens esparramados pelo piso, sentados, almoçando. Formam-se duas imensas filas: uma da Marmita, que vai até à rua, e outra do banheiro, que se inicia no final da escada que dá acesso ao 2º andar e vem até o pé da escada, sumindo num canto, para o único banheiro liberado.

Durante a tarde toda, segue um rico momento de convivência. Militantes da Comunidade Oscar Romero partilham a alegria de ver o bispo profeta, assassinado no dia 11 de novembro de 1977, declarado  beato no dia 23 de maio, na presença de 250 mil salvadorenhos, 12 chefes de Estado, Vice-presidentes de Costa Rica e de Cuba e delegações de dezenas de outros países: ‘pra nós ele já era santo, mas agora é um reconhecimento’, diz Lena.

Adilson, do MST, traz boas notícias de Goianá, Zona da Mata mineira. Uma enorme fazenda, 5 mil hectares, latifúndio que já foi terra de café e gado, agora vira assentamento, 130 famílias. A gente cultiva a luta e a luta cultiva a gente!

Uma senhora guarda para si duas marmitas, prevenindo o jantar, mas, diante de duas companheiras que ficam sem almoço, vai à bolsa e partilha a comida escondida. É bom ver que a força da partilha vence o medo da fome. Já um pequeno grupo de pessoas teria ficado no ônibus para não resfriar-se. A luta será tanto mais forte quando mais pessoas perderem o medo da chuva.

Mas o inimigo não brinca! Uma ocupação quase simbólica do Ministério gera todo um rebuliço e coloca um grande esquema de segurança na Marcha unitária, à noite, com presença da Cavalaria, ônibus cheio de policiais, muitos carros e motos, sem contar as dezenas deles posicionados espalhados por todo lado. A Praça Sete vira um show de luzes. Policiais se mexem, um grupo marcha e grita uníssono, feito animal enraivado pronto a lançar-se sobre a presa. Será o fim da lua de mel entre o Governo de Minas e os movimentos sociais?

Uma última notícia! O clima de ocupação do Ministério força reunião com Miguel Rosseto, Ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, que se encontrava em Belo Horizonte para o fórum Diálogo Brasil, PPA 2016-2019. Entre os militantes escalados para encontrar-se com ele, no Sine Teatro, Santa Efigênia, um casal  procura a reunião por tudo enquanto é canto. Mas nada! Gasta 28 reais de taxi e retornam ao Ministério sem cumprir a tarefa.  Mais tarde ficam sabendo que a reunião foi num local atípico, atrás do palco.

Esse desencontro, porém, teve seu lado bom. O casal de militantes vai parar no Coffee Break da ‘Dialogo Brasil’, come um delicioso pão de queijo e, o melhor, ganha papel e caneta,  que possibilita alguma anotação e a construção desta crônica.

Em tempos de tesoura neoliberal e de canetadas que assinam o retrocesso da classe trabalhadora, uma simples caneta pode redesenhar o sonho, a utopia, a unidade de classe, e reescrever a história, com o povo na Rua.

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