Conheça a história da primeira médica atingida formada em Cuba
A história de luta da catarinense Michelle Christmann começou cedo. Quando ainda era criança, sua família foi diretamente atingida pela barragem de Itá, construída no leito do rio Uruguai, entre […]
Publicado 14/11/2014
A história de luta da catarinense Michelle Christmann começou cedo. Quando ainda era criança, sua família foi diretamente atingida pela barragem de Itá, construída no leito do rio Uruguai, entre os estados o Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Desde o início dos anos 80, ainda sob o regime militar, a organização dos agricultores afetados por essa hidrelétrica, a Comissão Regional dos Atingidos por Barragens, foi um dos embriões do que viria a se constituir como Movimento dos Atingidos por Barragens.
Passado mais de um quarto de século do acordo entre os atingidos e a Eletrosul, em 1987, que proporcionou o reassentamento de mais de duas mil famílias, Michelle obteve mais uma conquista: é a primeira atingida por barragem a ser formar em Cuba.
Juntamente com mais dois atingidos, Cristian Marcos Tenutti e Everton Walcczak, Michelle se formou na 10ª turma do Exército de Jalecos Brancos em julho deste ano, após sete anos de estudos na Universidade de Ciências Médicas de La Habana.
Nesta entrevista, a atingida destaca as experiências no que diz respeito à medicina popular e o direito à saúde de qualidade, além de distinguir a medicina caribenha e brasileira. Para ela, a grande diferença é que aqui no Brasil, o médico é meio que visto como um ser superior, ele se acha superior. Lá não, são mais humanistas, são pessoas comuns.
Confira:
MAB – Sabemos que a sua história de militância começou bastante cedo, gostaríamos de saber sobre a sua trajetória de luta e sua relação com o movimento.
Michelle – A minha história com o MAB começou com a construção da barragem de Itá, localizada no Rio Uruguai, em Santa Catarina. Minha família foi diretamente atingida pela obra, que foi responsável por perdermos a nossa casa, nossa terra. Após muita luta, fomos reassentados em Mangueirinha, no Paraná. Foi nesse momento que me tornei militante. Sempre tive o sonho de ser médica, cheguei a prestar várias provas, mas não passei. Até que, em 2007, recebi um convite do MAB para ir a Cuba estudar medicina. Naquele momento fiquei um pouco receosa, já que havia a questão do diploma não ter validade aqui no Brasil, além de outras questões. Mas com o apoio familiar e dos amigos decidi ir.
Quais foram as maiores dificuldades no decorrer destes sete anos de curso?
Foi um processo bastante difícil. O curso em si é bem trabalhoso, estudávamos muito. Era muita dedicação, muito esforço pessoal, foi muito difícil aguentar a distância da família, a saudade era muito forte. Passei por momentos difíceis, desesperadores, em que dava vontade de desistir, mas seguíamos em frente e hoje vemos que valeu muito a pena.
E qual foi a impressão ao desembarcar em Cuba?
Antes de ir eu tinha muita curiosidade de conhecer Cuba. As pessoas têm uma visão formada, principalmente pela mídia, mas quando se chega lá é outra coisa. O povo é muito acolhedor, as pessoas são muito boas. Mas é algo completamente diferente de tudo. A televisão, por exemplo, é totalmente diferente. Não tem propaganda e as programações são todas educativas, com aulas de física, química, etc. Lembro que isso foi um grande impacto, algo totalmente distinto.
E sobre a questão da saúde, o que você tem a nos dizer sobre as experiências da medicina cubana?
Atualmente, existe em Cuba um médico para cada mil habitantes, um número muito diferente do Brasil, onde existem pouquíssimos médicos por habitante. Os profissionais conseguem dar maior atenção às pessoas como, por exemplo, fazer uma visita por mês em cada casa. Lá, a medicina é vista de forma preventiva. Em cada bairro existe um consultório médico, que é voltado para o que chamamos de “atenção primária”, trabalhando com a prevenção e a promoção da saúde, e também filtrando os casos para os outros hospitais especializados. Também são realizadas muitas palestras educativas sobre os hábitos da população. Tudo é muito organizado, todos passam primeiramente por esse setor, antes de buscar atendimento “secundário”. E todo esse processo não é tão demorado como aqui, não precisa remarcar a consulta especializada para o mês que vem, já que as duas consultas acontecem no mesmo dia. Mas pra mim, a grande diferença é que lá os médicos são mais humanizados. Aqui no Brasil, o médico é meio que visto como um “ser superior”, ele se acha superior. Lá não, são mais humanistas, são pessoas comuns.
A saúde no Brasil vem sofrendo um processo gradativo de privatização, sobretudo por meio dos convênios, planos de saúde e consultórios particulares. Como você vê esse processo?
Eu, pessoalmente, não consigo acreditar que uma pessoa se torne médico e tenha o objetivo de tirar dinheiro dos pacientes. Pra mim é um absurdo, não tem lógica, é uma vergonha muito grande. Eu tenho um objetivo muito maior que é salvar vidas, ajudar as pessoas. Eu não tenho nem palavras pra dizer o que eu penso sobre isso, é muito triste.
Sabemos que a saúde brasileira e da maioria dos países é altamente influenciada pela indústria farmacêutica. Sobre essa questão, o que você tem a nos dizer fazendo uma comparação com Cuba?
Em Cuba existe uma única indústria farmacêutica, que é muito boa, muito avançada e estatal. Alias, existem remédios que só são produzidos em Cuba como, por exemplo, a “vacina da meningo”, que só existe por lá e é exportado pra diversos países. Hoje, as 13 vacinas do calendário das crianças são de produção nacional. É totalmente diferente do Brasil, onde existem inúmeras marcas de um mesmo medicamento. Lá só existe um medicamento para cada doença. Também existe um centro de pesquisa muito desenvolvido, onde está em processo de estudo um novo tratamento contra o câncer, utilizando uma substancia retirada do veneno de escorpião.
Como você avalia o “Programa Mais Médicos”, no qual profissionais cubanos vêm ao Brasil com o objetivo de suprir as carências da saúde brasileira? Você poderia ser uma dessas médicas também?
Acho que é um programa que tem muito a oferecer, que está apenas começando. Muitas vezes ele é criticado pelo fato de “tirar a vaga de um profissional brasileiro”, mas essa questão não é verdadeira, pois a falta de médicos tem a ver com o processo de criação dos consultórios privados e a elitização da categoria. Acho que esse programa tem um futuro muito grande pela frente. Inclusive, eu espero sim ser uma dessas novas médicas, integrante do projeto.
Ao retornar ao Brasil, o que você trouxe como maior aprendizado? E o que você acha que o Brasil tem que aprender com Cuba?
Lá se aprende a ser humano, a ser solidário. Não tem como você ver uma pessoa com problema na rua e não ajudar. Recebi muita ajuda de todas as pessoas, que me ofereciam lugar pra ficar, ofereciam um prato de comida. Os próprios pacientes traziam presentes diversas vezes. O povo é muito solidário e muito tranquilo. Vou dar um exemplo, em Cuba existe apenas uma empresa de telefonia, não existe essa concorrência, essa vontade de vender e comprar, esse capitalismo selvagem que estamos acostumados. Por isso o povo lá é muito tranquilo, é muito sossegado. Você entra no mercado e o vendedor te fala “esse refrigerante tá quente, não compra ele não”, sabe? E lá não existe isso de “bom, vou fazer tal coisa por benefício próprio”, não, “eu vou fazer por que é meu dever fazer”. É viver a vida sabe. Se fala muito sobre a questão da liberdade, mas lá sim existe outra liberdade, de não se preocupar em ganhar dinheiro, em sobreviver do capitalismo. É simplesmente viver.