Tempo de prorrogação
Em prorrogação, há que se ter clareza para não permitir-se cura de feridas sociais com analgésicos sem um profundo exame de suas causas; para compreender que o temido vírus da […]
Publicado 29/10/2014
Em prorrogação, há que se ter clareza para não permitir-se cura de feridas sociais com analgésicos sem um profundo exame de suas causas; para compreender que o temido vírus da divisão (de classe) pode ser o germe da nova ordem social
Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB
Uma das expressões mais ouvidas desde o resultado das urnas é o Brasil está dividido. A causa aparente seria a campanha eleitoral. Ela chega a ser classificada pelo então candidato tucano à Presidência da República de sórdida. Houve alfinetadas recíprocas entre ele e sua concorrente, Dilma Rousseff. Centenas de milhares de mensagens odiosas circulam as redes sociais. Figurões da classe dominante fazem declarações eivadas de arrogância e preconceito contra eleitores supostamente desinformados – o bode expiatório tem sido o Nordeste. Um dos donos de grande veículo de comunicação é flagrado na rua segurando cartaz de baixo calão destilando raiva contra a Venezuela, insatisfeito com o não alinhamento do Brasil aos Estados Unidos. E publicação antecipada de VEJA tenta bala de prata como golpe na reta final da campanha.
Essa divisão real, externada acirradamente nesse processo eletivo, não tem sua origem na campanha eleitoral como acredita o senso comum e como afirmam os dominadores e seus porta-vozes. Ela vem da antiga pendenga entre capital e trabalho, irreconciliáveis. O que aparece como divisão e baixaria é apenas reflexo dessa questão mais profunda, a qual faz parte da estrutura da sociedade capitalista, camuflada no quotidiano pela ideologia do consenso.
A disputa presidencial no segundo turno é especialmente elucidativa. Há ensaios claros de luta de classe! A cordialidade e polidez envernizadas cedem lugar a palavrões sem rodeios. Pessoas abastadas vão às ruas e fazem enfrentamento, alguns agredindo fisicamente seus opositores, partindo para cima sem nenhum escrúpulo, alucinados com a possibilidade da vitória. Instituições, celebridades vão se posicionando de um lado ou de outro.
Os números das urnas revelariam, depois, a localização exata do epicentro do conflito, a condição econômica. Em termos gerais, os mais enricados se identificam com a candidatura tucana. No mapa, Aécio Neves vence exatamente nas regiões Centro Oeste, Sudeste e Sul, com maior acumulação de riqueza. São Paulo, capital econômica, lhe rende a maior vantagem em números absolutos.
No fritar dos ovos, porém, a classe dominante, presente tanto do lado de Aécio Neves quanto de Dilma Rousseff, sabe dos seus exageros no calor da campanha, desnudando uma verdade proibida, a atualidade da disputa de classe. É uma espécie de tiro no pé! Hoje muito mais gente sabe que esse conceito não é coisa do passado. E que a exploração gera acumulação de riqueza e miséria, duas faces de uma mesma moeda.
A encrenca está feita, o leite quase derramando. Então se retoma o discurso do consenso para que a exploração e a noção de classe sigam naturalizadas. Capitalistas de tendência especulativa e produtiva, antes em lados opostos, dão-se as mãos em nome de interesses comuns.
Os profetas do apaziguamento estão apostos. A Globo, metida na ingerência do econômico e midiático sobre o político, fala por Bonner em união, reconciliação, cura de feridas. Alexandre Garcia repete a mesma lorota. Lembra os riscos de um país dividido entre ricos e pobres, norte e sul, índios e não índios, e resume seu recado na frase a divisão é um vírus que pode desestruturar a nação. Chico Pinheiro, bem mais comedido, coloca Minas como decisivo na eleição de Dilma Rousseff e reafirma que o Brasil é um só!.
O jogo, assim, entra na prorrogação, mais importante que o tempo regular, cheia de sutilezas. As forças se reorganizam em torno de novos interesses. De um lado está o time do consenso. Ele faz de tudo pela união de enricados e empobrecidos exatamente para seguir adiante a divisão camuflada, em estado de dormência. Esse time sabe que a eficiência do capital é proporcional à harmonia entre explorados e exploradores.
De outro lado está o time que propugna reformas estruturantes rumo a uma nova ordem social. Ele aprende da física que dois corpos não ocupam o mesmo lugar ao mesmo tempo. Ele aprende da história que, na sociedade de classe, quando uma ganha a outra perde. A possibilidade de todo mundo ganhar carece de base material, pois, no limite, vence o mais forte. A expressão Brasil: um país de todos é contraditória no seu fundamento e só é adequada num contexto de alta concentração de renda. Ele sabe que a mudança não é uma questão de vontade, mas de correlação de forças, por isso aposta na proximidade das forças de esquerda por dentro do governo, no trabalho de base e na unidade de classe para acumulação de poder popular.
Tocar um jogo na prorrogação, fora do tempo regular, em estado de aparente calmaria, mas com os bastidores fervendo, é desafiante: as peças do xadrez tendem a reacomodar-se no status quo, militantes temporários voltam ao pragmatismo, o ronco do estômago confunde a reflexão da cabeça, profetas do consenso conclamam a nação, papagaios do sistema reproduzem a ideologia da dominação. E o tempo aquecido da campanha parece ter sido apenas uma brincadeirazinha.
Em prorrogação, há que se ter clareza para não permitir-se cura de feridas sociais com analgésicos sem um profundo exame de suas causas; para compreender que o temido vírus da divisão (de classe) pode ser o germe da nova ordem social.
Em prorrogação, há que se ter pressão sobre o governo para que sinalize a disposição de ir construindo um governo popular: mexendo na própria carne, tendo como principal aliança o povo organizado, incentivando mecanismos de democracia direta e convocando a constituinte exclusiva para reforma do sistema político, conforme exigência de quase 8 milhões de brasileiros.
A bola continua rolando, não é hora de sair de campo.