Café com prosa
Ser contra Belo Monte não é discursar, chorar, fazer pose, espernear, bater o pé e xingar quem quer que seja. Ser verdadeiramente contra Belo Monte nesse momento é fazer trabalho […]
Publicado 08/09/2014
Ser contra Belo Monte não é discursar, chorar, fazer pose, espernear, bater o pé e xingar quem quer que seja. Ser verdadeiramente contra Belo Monte nesse momento é fazer trabalho de base, articular as várias forças na perspectiva da luta unitária para sessar a violação do direito humano nas suas diferentes formas.
Vinte nove de agosto, seis e trinta. O carro entra na fila, que já é imensa, e a balsa do Assurini zarpa meia hora antes do horário. Isso tem sido comum pelo excesso de demanda na travessia do Xingu nessa Altamira caótica, estuprada pelo capital. Militantes do MAB ficam para trás e, quando reparam à frente, notam que também representantes da Norte Energia e da Casa de Governo estão rodados. A militância, cuja missão é fomentar a luta em meio às contradições de qualquer conjuntura, frequentemente esbarra com governos e empresas pelo caminho. A lição da história, nossa única mestra, é que do inimigo não se deve ficar tão longe a ponto de perdê-lo de vista nem tão perto a ponto de misturar-se com ele.
A primeira providência, nesse caso, foi ligar para João, da Sol Nascente, para segurar o povo. Depois, foi tomar café. Os carros continuam na fila, guardando lugar, os homens da empresa saem a pé pela rua à procura de um local que lhes parecesse à altura, pois, embora trabalhadores, alguns são extremamente arrogantes. Os militantes ficam ali mesmo, à beira rio, numa lanchonete rústica. Pedem duas tapiocas, um pão de queijo e tomam café com leite e muita prosa, a qual traz afirmações e descobertas.
A Norte Energia é mesmo um gigante privado, cujo alimento é dinheiro público através do BNDES e estatais. Ela tem convênio hoje com 64 empresas, entre as quais a CCBM e a CMBM, e essas, por sua vez, fazem seus contratos com terceirizadas, podendo chegar à décima ou vigésima geração. Imagine o nível de precarização das condições de trabalho! No topo estão sete diretores, numa unidade tensional, cada qual representando grupos com pesos e interesses diversos, numa interminável disputa interna.
À medida que a barragem se consolida pela força bruta, a disputa intercapitalista vai migrando do presente para o futuro. Ela entra num segundo tempo: pós-barragem! Tubarões brigam pelo domínio do ouro, da areia, do transporte urbano, das estruturas políticas, dos negócios. Um tempo que poderá ser de ressaca exige habilidade para surfar e, quem sabe, até provocar algumas ondazinhas, numa espécie de sobrevida.
A pressão vem forte sobre alguns poucos funcionários do governo, que restam bem intencionados. E não suportam! Não querem correr riscos, ameaças, não querem mendigar, decidem, então, cuidar de suas vidas. Vão ganhar três vezes mais, provavelmente na Norte, como se diz entre os que lhe ficam familiares.
Entre os atingidos, cresce o número de pessoas adoentadas. Um camponês do Palhal, que até agora não recebeu nada de nada, acha-se com a mente confusa. Mete-se a trabalhar de mototaxista clandestino, bota óculos pretos, deixa o cabelo e barba crescerem fica irreconhecível – e diz que só vai cortá-los quando a Norte Energia garantir seu pleno direito. Que promessa sem jeito! Se outros e mais outros fazem essa opção, em breve haverá mais uma categoria de atingidos em Belo Monte, a dos barbeiros.
Engano achar que o dinheiro resolveria tudo, pois os traumas são profundos. Uma senhora, ainda que sua família tenha recebido um milhão e duzentos mil reais – pois residia na área de construção do muro, de grande interesse da empresa -, entra em depressão e reclama de que antes morava perto de seus parentes, na beira do rio, e agora está numa área isolada.
A prosa iniciada naquele café da manhã se estende por toda a semana,com indígenas, urbanitários, carroceiros, pescadores, oleiros, igrejas, moradores do loteamento Jatobá, dos bairros Invasão dos Padres, Boa Esperança, Bela Vista. Ser contra Belo Monte não é discursar, chorar, fazer pose, espernear, bater o pé e xingar quem quer que seja. Ser verdadeiramente contra Belo Monte nesse momento é fazer trabalho de base, articular as várias forças na perspectiva da luta unitária para sessar a violação do direito humano nas suas diferentes formas.
Os reclamos vêm de todos os lados! Bandidos armados invadem a casa do sindicalista e lhe levam a pulseira de 40 gramas de ouro. O presidente da Colônia de pescadores de Altamira confessa que existe um Termo de Cooperação entre a Norte Energia e a sua organização, tudo por enquanto no papel, e questiona a divisão do orçamento previsto: 22 milhões, sendo 11 para frigorífico em Altamira, 6 para monitoramento de peixes e 5 milhões distribuídos entre 6 colônias (Altamira, Vitória do Xingu, Anapu, Souzel, Porto de Moz e Gurupá) para a sua estruturação.A família do pescador não recebe um tostão furado.
Nos bastidores se sabe que a Norte Energia até queria indenizar os pescadores para livrar-se deles, mas o Ministério da Pesca não o permitiu com o argumento de que se deve priorizar soluções coletivas. O princípio até faz sentido, mas, colocado no contexto de Belo Monte, o tiro deverá sair pela culatra. No máximo, haverá estruturas, cada uma com seus donos e seus vícios, enquanto aquela mulher e aquele homem que pescam, e vivem dessa atividade, ficam de fora. Nesse caso, o Ministério da Pesca está equivocado e deveria compreender que direitos coletivos e individuais são complementares e, não, excludentes.
Outras categorias de trabalhadores, entre as quais os carroceiros e oleiros, correm o mesmo risco por causa desse conceito acanhado e idealista de setores do governo. Nessa perspectiva, o capital coloca o dinheiro, os conceitos e o próprio governo no bolso.
As famílias do Jatobá, por sua vez, vão se virando por conta e risco, sem o reassentamento de fato, morando em casa de concreto imposta pela empresa. O visual, porém, começa a ressuscitar algumas características das antigas áreas alagadiças. Uma forma, talvez, de aliviar feridas pela remoção forçada e mudança drástica no modo de vida. Galinha, cachorro, gato, crianças, muitas crianças, tudo vai tendo seu lugar. Existem puxados, à frente, do lado ou atrás das casas, alguns com restos de madeira da antiga moradia. Ai do povo se não fosse o próprio povo!
Um que outro já cria alguma alternativa de sobrevivência já que dos governos e da empresa não se pode esperar nada. À frente da casa de Glésio existe uma placa enorme improvisada com a inscrição lava-jato, embora ele disponha apenas de água minguada e das próprias mãos, limpando veículo a um custo unitário de 20 reais. Clélia coloca um comércio, tudo bem ajeitadinho, e faz questão de afirmar que sua conquista é graças ao Movimento. Edzângela levanta uma coberta aos fundos da sua casa, ali as famílias se reúnem e debatem os problemas, seguindo em luta.
Na noite do dia 2 de setembro se encontram ali, debatem o Plebiscito Popular, votam e se organizam para participar da caminhada da paz inquieta, realizada no dia 4. Durante audiência, logo após a caminhada, chega a informação de que um dos 7 diretores de Belo Monte, justamente o que confirmara presença no La Salle para ouvir o povo, fora demitido. Muito estranho! Ele, um dos diretores mais fortes na disputa interna, porta-voz do império econômico das empresas de São Paulo presentes na obra, ligado ao PSDB, com alergia de povo, agora está demitido. Não se sabe que poder mais forte o tirou.
Mas em meio a essa espécie de platonismo altamirense, onde o mundo estressado aparente seria apenas a sombra do real, onde o senso comum não daria conta de ler os bastidores, onde tudo, absolutamente tudo, estaria definido e consumado pela força invisível do capital, aparece gente do povo com uma reserva de esperança e criatividade inesgotáveis. Essa é a coisa mais bela de se ver: uma persistência quase inexplicável! Pessoas cujos direitos são totalmente negados ou conquistados apenas em parte (por enquanto) se unem em Movimento e vão dando passos lentos, mas seguros. A organização popular, que desata os pés, as mãos e, principalmente, a consciência do atingido, através da luta material concreta, o livra dessa caverna platônica maldita, das ideologias caolhas, do esquerdismo ineficaz e lhe dá a possibilidade histórica de subverter a ordem dada.