Um animal estranho ronda a Amazônia
Há um animal estranho rondando a Amazônia, às vezes atraente, às vezes nojento, muito esquisito. Uns dizem tê-lo visto frente a frente, aqui e acolá, e descrevem-no, mas as descrições […]
Publicado 16/07/2014
Há um animal estranho rondando a Amazônia, às vezes atraente, às vezes nojento, muito esquisito. Uns dizem tê-lo visto frente a frente, aqui e acolá, e descrevem-no, mas as descrições não combinam. No entanto, pelos sinais deixados na terra, no ar, na água e no fogo, ninguém, com um mínimo de senso, duvida de que se trata do mesmo animal, em mutação.
Há os que afirmam ter visto apenas suas pegadas pelo chão, e juram, pelo céu e pelo inferno, que é ele. Incluo-me entre esses. Nunca o vi face a face, mas tenho deparado com ele, vendo seus rastros na areia do tempo ou sentindo suas luzes vibrantes ou seu bafo, que são de tontear qualquer um.
O diabo não é, porque o dito cujo (dizem o Sujo) cheira a enxofre e esse, pelo que sinto, tem cheiro é de sangue e de exploração.
Vi-o de perto em Tucuruí, agora mesmo, no dia 8 de julho. Ele tem fuçado tudo por lá, desde quando era floresta, no início da década de 80. Removera tanta terra, e tanta pedra, e tanta história, que barrara o Tocantins tocado pelo Araguaia.
O muro ali, dizem, foi construído com chumbo de canhão e sangue de operário, misturado ao medo da força bruta.
O medo é a principal substância que dá consistência aos muros entre a opressão e a liberdade.
Estudos recentes dão conta de que essa mesma mistura, venenosa e terrível, levara centenas de lutadores à morte ou ao exílio, massacrara Canudos, dizimara a Guerrilha do Araguaia, causara a morte de Tito, eliminara Marighela; esse, sim, confessara não ter tido tempo para ter medo.
Embora torne o povo pacificado, essa combinação (chumbo e sangue) só não consegue, por nada desse mundo, matar o sonho de liberdade. Após ser pisado e repisado pela força bruta, ele se refaz, como Fênix, de sob as cinzas.
Na região de Tucuruí, apesar desse animal estar ali há tanto tempo, sugando a energia do rio e do povo, a geração mais nova, principalmente, nem o percebe; ele faz parte da paisagem local, naturalizado. Mas seus sinais estão presentes e visíveis para os olhos que enxerguem com a cabeça da consciência de classe.
Senhor Antônio, morador do bairro Santa Catarina, em Breu Branco, 8 filhos, é obrigado a afastar-se do Movimento dos Atingidos por Barragens por 60 dias para trabalhar fora e quitar suas dívidas. Vai com um Gato a 140 Km de Tucuruí cortar Juquira por R$ 30,00 a diária. Em Breu Branco e Tucuruí, ele não encontra trabalho.
Sua filha jovem, 22 anos, quer fazer advocacia ou medicina, o seu sonho, mas sua condição financeira não o permite. Ela acha que o animal, cretino, tem a ver com isso.
Abaixo do muro, 500 famílias são atingidas todo ano por enchentes, quando o animal lota a barriga e esguicha aquela água suja pra fora do leito do Tocantins.
Acima do muro, já na cidade de Marabá, ao menos 300 famílias são afetadas, anualmente, por esse mesmo arroto, pelo inchaço do rio, no remanso da barragem.
Enquanto o povo rala, e ronca o estômago, o leite precioso da energia vai embora e o animal, sonolento, deita-se logo ali, na chamada Vila Permanente, administrada hoje por uma Subprefeitura, mas, de fato, comandada pela Eletronorte, com seu bafo perfumado. Tanto empresas estatais quanto privadas têm esse bafo perfumado. Com guaritas e guardas privados nas entradas, ali os moradores chiques têm do bom e do melhor, com as ruas e praças bem cuidadas.
As casas ali, grandes e bem construídas, são alugadas aos abastados por apenas R$ 400,00, incluídas água e energia.
Vi os sinais desse mesmo animal na Volta Grande do Xingu, no dia 4 de julho, à noite. Seus olhos, tão fortes, quase cegam a vista da gente. Seu barulho, tão estridente, quase deixa a gente surdo.
A área, chamada Belo Monte, está irreconhecível. As famílias se dispersaram, as comunidades se destroçaram, a terra toda remexida, pedreiras e mais pedreiras são detonadas duas vezes por dia e blocos e mais blocos de pedra se amontoam em grandes paredões. Onde era rio, floresta, gente, uma nova paisagem, mais selvagem, mais hostil, vai ganhando forma. O muro. O canal. A estrutura das turbinas, e seus vertedouros. Vila de operários. Casas noturnas no distrito de Belo Monte, na saltada da balsa, na Transamazônica, com luzes piscando e mulheres e homens entrando e sumindo na escuridão da sala-dançante. Dizem haver menores pelo meio.
Contam que esse animal, em Belo Monte, tem a magia de transformar sonho em ilusão e, com isso, põe casinha de concreto no lugar de moradia e troca a Força de Trabalho por salário. Hoje, ao menos 25 mil trabalhadores se colocam a seus pés prontos a servi-lhe, no que precisar.
Não são subservientes, à moda de algumas centenas de autoridades; são pais e mães de família que dependem da força de trabalho e do cérebro para alimentar sua prole e seus sonhos, transformados em ilusão. Homens e mulheres, com seus sonhos rebaixados à ilusão, transformam-se em máquinas e se deixam, livremente, sugar até à última gota.
Um operário me disse que morre de trabalhar fazendo hora extra, pois quer comprar um Siena. Seus olhos brilham quando passa a cegonha lotada de carros novos. Já tem dez mil guardados. Outro quer ganhar dinheiro para colocar telhado e rebocar sua casa, em Novo Repartimento, e por isso pretende ficar ali dez meses.
O rosto dos trabalhadores fica marcado pelo cansaço e a mente, por vezes, petrificada, da ideologia do dominador e de tanto ser apenas Força de Trabalho, e o uniforme, de cor cinza, fica branco de sal. Por isso, salário.
Apesar de tudo, há amplas reservas de solidariedade e rebeldia entre os operários seduzidos por esse estranho animal, mas essas, quando identificadas, são imediatamente lançadas fora. Qualquer opressor treme diante da solidariedade de classe e da rebeldia, que lhe causam náuseas e, por isso, o tornam violento.
Uma vez por mês, em data marcada, esse animal estranho – pois grotesco, primitivo e, ao mesmo tempo, moderno – vai esperar os trabalhadores em Altamira, em forma de papel-moeda. Nesse dia, a cidade, que já se tornou um caos, vira um rebuliço terrível. Bancos, prostíbulos, bares, igrejas em especial as que prometem soluções imediatas para todos os problemas -, tudo fica cheio. Há que se ter uma válvula de escape! E o papel-moeda, trocado por comida e assessórios, garante que a engrenagem continuará girando, no mês seguinte e nos subsequentes, com Força de Trabalho disposta a ser trocada por mais papel-moeda, e, assim, sucessivamente.
A energia poderosa, então, que alimenta esse estranho animal o qual, na Amazônia, vai da pistola à violência mais sutil, vem dos braços e das mentes dos trabalhadores, cujos sonhos são reduzidos à ilusão materializada em papel-moeda e na vertigem do novo e do consumo. Assim, o próprio operário paga o seu salário e, além da mais-valia no cofre do opressor, deixa-lhe uma fábrica de dólar no rio Xingu.
Esse é o questionamento central a qualquer barragem: é um equipamento para acumular lucro e, não, para melhorar a vida do povo.
É quase certa a transmutação desse animal, que toma a forma conveniente à melhor apropriação de seus alimentos preferidos: bem natural e trabalho.
Em Marabá, esse animal, que passa correndo sobre as linhas do trem 24 vezes ao dia, levando riqueza e deixando miséria, quer duplicar o trilho, de seu uso exclusivo, sem mexer na ponte, que serve à cidade inteira. Quer, ainda, construir uma hidrelétrica lá.
Em Vitória do Xingu, ele passa o tempo arrotando R$ 10 milhões/mês de ISS nos últimos três anos. Nos canteiros de obra, ele tem a forma de máquinas; algumas imensas, com guindastes que somem entre as nuvens, outras menores, feitas homens e mulheres, coisificados. Há quem já o tenha visto em forma de carro blindado, de mansão cercada de grade, de latifúndio, de lavra de minério, de avião, de fuzil, nas cores as mais variadas. Quantas vezes ele se mistura até com o verde das florestas, com o azul dos oceanos e com uma utopia ilusória, dependurada no arco-íris, que arreda para frente a cada passo, feito a porta de um céu que nunca chega.
Alguns até afirmam tê-lo visto em forma de gente: sorrindo, um riso ensaiado; chorando, um choro vitimado; fazendo caridade, uma caridade calculada, meticulosa e friamente; nervoso, como prestes a perder o jogo, quando está ganhando de balaiada; criativo, pois, além de celulares, ciências, ele inventa o seu próprio deus, à sua imagem e semelhança.
Enquanto papel-moeda, ele abastece os candidatos nas campanhas eleitorais e, depois, se alimenta das benesses do Estado nas suas diferentes esferas. Nessas épocas, organizam-se eventos para limpar dinheiro. Realizam-se algumas obras para sobrar dinheiro. Inventam-se atividades de consultoria sem necessidade alguma, gastando-se, por exemplo, mais de um milhão de reais para estudo de aptidão de solo para Cacau numa região historicamente cacaueira. Grande parte dos 500 milhões do PDRSX, que seria usada para melhorar a vida do povo, está sendo gasta em consultoria, que vai do nada a lugar nenhum. São apenas mecanismos para formação de Fundo de Campanha eleitoral.
Teorias não confirmadas defendem que esse estranho animal um dia morrerá de velho. Não nos parece! Ele é antigo o suficiente para já dar provas de que terá mais que sete fôlegos. E é novo o suficiente (neo) para continuar seduzindo mentes e corações, numa sobrevida imortal, alimentado pela inovação tecnológica a qual, embora fedida de exploração, traz o banho de perfume do progresso.
Cada vez mais pessoas se convencem de que a única forma de matar esse animal, cuja boca vai engolindo tudo (mercadoria), é atacá-lo no seu ponto de reprodução, a exploração, e tomar o Estado e torná-lo revolucionário para deixar de alimentar o opressor, mas isso exige muita força popular acumulada. Apenas vacinas para os vírus não resolvem, pois esses, à semelhança do animal, também sofrem mutações, e se tornam resistentes.
Algumas vacinas muito especiais, dentro de um processo mais amplo como plebiscitos e outras iniciativas -, essas ajudam a enfraquecê-lo.
Karl, que já destrinchara um animal em tudo semelhante a esse que anda aqui, colocando seus bofes para fora, descobrira, por trás da sua truculência prepotente, como ele funciona por dentro, e o seu ponto fraco.
Uma última informação, da qual quase me esquecia. Pesquisa de última hora, mas confiável, revela que o muro de Belo Monte está sendo construído com poeira estelar – a maioria sem luz própria -, mesclada de flechas quebradas, malhadeiras rasgadas e penas de Tucano, tudo misturado ao sangue e ao medo, e muita ilusão.