Crônicas – para que servem?

Não sei por que ainda se escrevem crônicas sobre Belo Monte. A vida é tão corrida! Todo mundo anda tão estressado com mil coisas para fazer num só dia como […]

Não sei por que ainda se escrevem crônicas sobre Belo Monte. A vida é tão corrida! Todo mundo anda tão estressado com mil coisas para fazer num só dia como se fora o último de toda a sua existência.

Quem terá tempo para saber que a Norte Energia começou a expulsar as famílias do alagado de Altamira no dia 15 de janeiro? E que nesses alagados moram mais de 30 mil pessoas? Que a empresa cadastrou mais de 7 mil imóveis, e diz que vai construir apenas 4.100 casas? E que vai ficar muita gente para trás? Que essas moradias seriam distribuídas nas áreas de Jatobá (1.100), Água Azul (750), São Joaquim (1.150), Laranjeiras (650) e Casa Nova (450)?

Depois que o deus Cronos resolveu acelerar tudo, não sei se as pessoas terão tempo para isso.

Os internautas, então, mal passam os olhos ligeiros e, quando esbarram nelas (nas crônicas), vão navegar noutras páginas, noutras praias, mais rápidas, às vezes mais rasas, e se dão por informados.

Especialmente alguns, pós-modernos, revisionistas, adoram garimpar pensamentos aqui e ali, na correria, e os busca onde estão disponíveis com mais facilidade.

Pensar é passado num mundo onde tudo está pronto ou por acabar.

O trabalhador, coitado, esse chega moído de tanta exploração e não tem ‘saco’ para ler nada. O máximo que ele consegue é ver o Jornal Nacional, cochilando no sofá, e talvez a novela.

Nesse mundo corrido e cansado, a Norte Energia, através do seu ‘boletim global’, faz matéria especial de mais ou menos sete minutos sobre Belo Monte, no dia dezessete de janeiro de 2014.

A impressão é que até mil crônicas escritas se desfazem como papéis inúteis e viram pó; tornam-se nada, pois o império midiático e econômico impõe a superficialidade, a pressa e a imagem mais nítida como critério de verdade e, não, a maturidade reflexiva.

 

De forma subliminar, a ideologia da dominação toma conta da cabeça dos brasileiros.

O repórter informa que uma turbina de Belo Monte gera energia para três milhões de pessoas.  Uma informação bombástica e preciosa para o povo. Com suas vinte e quatro turbinas, Belo Monte daria para abastecer uma cidade de 18 milhões de residências (60 milhões de pessoas). Quase um terço do Brasil!

Qual a mensagem? Quem não quer uma obra assim é louco!

Aqui calha bem a pergunta que o MAB e outras organizações vêm fazendo: energia para quê e para quem?

A energia de Belo Monte é uma mercadoria, um produto privado para atender à demanda do capital. Assim como se perdem alimentos nos grandes supermercados e vão para os lixões enquanto pessoas passam fome, assim também pode sobrar energia elétrica e as famílias vão continuar sem luz ou com tarifas exorbitantes. Nesse caso, a matemática não é suficiente para deslindar a verdade.

Aqui vale, também, o que os estudiosos e os simples observadores afirmam do Xingu. Ele tem uma dinâmica muito própria, com grande variação anual no nível de suas águas. Durante longos períodos do ano, muitas turbinas podem ficar paradas.

Mas os capitalistas de plantão possivelmente vão fazer desse problema o argumento principal para a construção de outras barragens no Xingu, alegando que isso é condição para viabilizar Belo Monte do ponto de vista econômico.

De todo jeito, usando seus próprios acertos e erros pretendem abocanhar tudo na Amazônia, e os bens naturais do mundo inteiro. Principalmente agora, alertados pela crise capitalista quanto à vulnerabilidade de seus papéis.

O lago de Belo Monte, esse sim, será muito grande, admite o repórter: equivalente a cinquenta e cinco mil campos de futebol! Vale a pena repetir: cinquenta e cinco mil campos de futebol! É muita coisa!

O repórter não repete! Pelo contrário, procura logo amenizar o impacto desse desastre anunciado no ‘coração’ da Amazônia afirmando que o rio não vai sair do seu nível normal das maiores cheias.

Então o lago não seria tão grande… Mas quem conhece o Xingu sabe que isso é muito. As maiores cheias do Xingu inundam extensas áreas, e levam boa parte de Altamira para debaixo d’água. É isso que vai ocorrer com o lago cheio.

Há quem diga com alguma razão que o nível do lago poderá ir além do previsto. Nesse caso, o desastre ainda seria maior.

É certo que, na aparência, a vista do Xingu continue como um rio cheio. Mas as aparências enganam.

O que parece rio será um lago formado por um barramento, como um corte numa artéria central do corpo ambiental e social, com tudo que isso significa de impacto negativo na vida aquática e no meio de vida de ribeirinhos, indígenas, camponeses e urbanos, que precisam do rio vivo.

O rio é natural, o lago é artificial, controlado por uma empresa privada.

Apenas um lembrete: não se falou um ‘a’ sobre os povos indígenas na reportagem da Globo. Também Lobão já tinha alertado que, na sua visão, ‘nenhum índio é molestado em Belo Monte’.

Não sei por que ainda se escrevem crônicas sobre Belo Monte. O que sei é que a barragem, nesse exato momento da reportagem, vive um tempo extremamente crítico. Agora cessam os discursos com ares de filantropia e, literalmente, a Norte Energia começa a expulsar famílias de áreas urbanas de Altamira.

Tudo na reportagem é (uma encomenda) especial. Ouve-se uma voz de fundo sobre políticas públicas enquanto se mostram as palafitas e, logo em seguida, aparece imagem das casinhas bonitinhas congelada.

Essa tirada foi fantástica, pois no momento, a remoção das famílias de Altamira é o calcanhar de Aquiles da Norte Energia. Nada melhor para a empresa do que mostrar que as famílias estariam indo de palafitas para aquelas casas ‘bonitas’, ainda que sua beleza seja mais recurso visual que realidade.

A expressão ‘casa de alvenaria’, também, chama particularmente a atenção. Houve muitas mobilizações em Altamira por casa de alvenaria contra as casas de concreto, que não permitem intervenções – um puxado, mais um quarto -, que têm vida útil de apenas cinco anos.

O que a Norte Energia fez em resposta às mobilizações? Mudou apenas a sua terminologia e passou a chamar as casas de concreto de casas de alvenaria.

Ela transforma uma questão política e de direito elementar em questão semântica, impondo sua vontade para ganhar tempo e mais dinheiro.

A empresa continua garantindo que as casas são frescas. Ela tem razão por ora, no inverno amazônico, com o friozinho.

Há boatos de que a Norte Energia teria vendido tão bem o seu ‘peixe’, que o governo federal teria comprado a idéia, e deverá construir casas de concreto no Brasil inteiro pelo programa Minha Casa Minha Vida.

De qualquer forma, nem o governo federal nem o gestor público local apoiaram a reivindicação do povo.

O fato objetivo é que o lago vai invadir tudo ali, onde as famílias moram hoje, em janeiro de 2015. Mas a motivação subjetiva e inconfessa é preconceito, limpeza social, expropriação de um povo e apropriação de uma área nobre.

Hoje essa área pode ser ‘feia’, como dizem, por estar totalmente abandonada. O que eles querem é ‘reurbanizá-la’, ou seja, fazer ali um espaço chique para gente bacana, com prolongamento do cais, ciclovias, bosques, enquanto os empobrecidos se dispersam.

Anunciara-se Belo Monte como a redenção da miséria no norte do país. Essa é a forma de Belo Monte acabar com a pobreza em Altamira: dispersando os empobrecidos, escondendo-os, empurrando-os para as periferias ou deixando-os morrer vítimas da violência, que cresce a cada dia.

O repórter ainda diz que existiria em Belo Monte uma espécie de Arca de Noé, com plantas e animais que repovoariam a região após esse dilúvio. Supostamente ao menos esses estariam salvos.  Os que não conseguem espaço na Arca dos bichos e plantas ficam rodados, feito os homens e mulheres atingidos e operários, entregues à própria sorte.

Finalmente vem a tentativa do golpe de misericórdia. O recado da reportagem especial não poderia ser mais claro quando afirma que após o início da operação da barragem, prevista para o começo de 2015, ‘as críticas serão águas passadas’. De um lado ela aposta na memória curta do povo. De outro lado, ela quer que assim seja. Amém!

Não creio nisso!  Tudo que se espreme demais sai entre os dedos. O povo organizado carrega uma eterna teimosia, uma real liberdade prenhe de sonho, pois aprendeu da história que o império, ainda que por ora seja mais forte do que o poder popular, não tem a palavra final e definitiva.

Por que, então, ainda se escrevem crônicas sobre Belo Monte. É por isso! É porque há um acúmulo histórico indestrutível.

Há um monte de coisa ‘banal’ como a melhora da Rua 8 no alagado de Altamira. As famílias fizeram uma luta a partir de um grupo de base do Movimento dos Atingidos por Barragens. A rua foi aterrada, e o Xingu não consegue mais submergi-la. As lâmpadas dos postes foram trocadas, e a noite, agora, é clara como dia. Os adolescentes podem brincar até tarde. Colocou-se uma caixa d’água grande, e as crianças agora podem banhar-se sem os gritos da mãe a apressá-las. E as mães e pais podem cuidar de seus afazeres sem preocupação com falta d’água.

É verdade que também a Rua 8 será engolida pelo lago. Mas ele não conseguirá engolir a consciência desperta.

Essas e outras coisas são importantes demais para se perderem na correria do tempo, no império (provisório) prepotente e na insustentável leveza violenta do capital, e da telinha.

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| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

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