O remo, o café do Paulo e os bacanas no Xingu

Nada é mais perto e mais íntimo da miséria do que a opulência, ainda que, no cotidiano, haja enormes distâncias que as separem. Por Claret Fernandes, militante do MAB e […]

Nada é mais perto e mais íntimo da miséria do que a opulência, ainda que, no cotidiano, haja enormes distâncias que as separem.

Por Claret Fernandes, militante do MAB e missionário na Prelazia do Xingu

Domingo, 22 de dezembro! O Xingu é cenário-retrato do caos em Altamira, que sofre de metamorfose estética, onde se justapõem mundos ‘velho’ e  ‘novo’ mas não se rompem as argolas da escravidão. Na superfície de suas águas esverdeadas misturam-se a lerdeza da balsa, minúsculos botes a remo,  rabetas,  voadeiras, lanchas e Jet ski, como motos aquáticas, com seus pilotos aventureiros e manobras perigosas.  Por pouco não se chocam! Quando chega a noite, luzes se ascendem entrelaçadas aos coqueiros, no cais.  Brilham, anunciando o (quase) natal!

Em mensagem natalina ao povo de Brasil Novo, dom Erwin, bispo do Xingu, anuncia: ‘essa mulher grávida, logo mais vai dar à luz. Aqui não é lugar para parto. Um recém-nascido perturba e tira o sossego de outros hóspedes’. E denuncia: ‘indígenas expulsos de suas terras, agricultores banidos do campo, famílias arrancadas de suas casas e sítios por causa da hidrelétrica de Belo Monte, mães com crianças sem abrigo, doentes sem leito nos hospitais’. Por fim pergunta: ‘Jesus nasceu fora da cidade. Dois mil anos atrás não havia lugar para Ele. Será que hoje é diferente?’.

Altamira ainda tem lá seu jeito delicado e hospitaleiro. Alguns acham que tudo isso vai às favas, pois o capitalismo destroça o que encontre pela frente. A violência vem crescendo, com casos anedóticos se não fossem dramáticos. Um segurança privado contou que deparou com uma pessoa deitada pela manhã à beira do cais e, quando foi acordá-la, estava com uma faca encravada nas costas, e morta. Então brincou, mas vivamente indignado, que ‘se matam dois num dia e já deixam dois amarrados para o dia seguinte’.

Apesar de extremamente violento, não sei se o capitalismo vai mesmo destroçar tudo; não sei se chega a tanto! O povo, embora não seja santo, tem uma reserva de gratuidade e de sabedoria capaz de resistir e sobreviver a qualquer intempérie, por mais avassaladora que seja.

É fato que o caos atual impõe novo ritmo de vida, e mexe com os conceitos. O vírus do capitalismo, tão assanhado com Belo Monte, atingirá o coração do povo empobrecido, não se sabe em que grau. A regrinha mágica ainda vai fazer muitos adeptos: ter é ser! À lógica da pistola dos jagunços patrocinada pelos ricaços se justapõe a lógica perversa do Estado privado, submisso ao Capital.

Mas o povo subsistirá, apesar de tudo!

O cafezinho do ponto da balsa, que era gratuito, agora virou o Café do Paulo.

Por enquanto ele é quase nada! Difícil até percebê-lo: uma tarimba de tábua encostada na parede corroída pelo tempo, garrafa verde e pequena, uma vasilha com água do lado e quatro copos dentro. As pessoas chegam, pegam o copo, servem-se, e depois o mergulham de novo naquela água, já meio escura do restinho no fundo.

Perto da garrafa acha-se um pequeno cofre de madeira, escrito em letra preta e artesanal: ‘Café do Paulo, 50 centavos’. Na parte de cima do cofre, um orifício onde se coloca a moeda, ouvindo-se o tilintar dela em meio a tantas outras lá dentro, sinal de que a coisa vai dando certo.

É bem possível que um ou outro encha o copo de café e não deposite ali nem meio centavo. Mas isso não é problema, entende? O café é um bico nesse tempo de economia aquecida! O que era uma oferta da Casa virou um pequeno negócio. O trabalho principal de Paulo é cuidar de caminhões que chegam e saem ligeiros, lotados de areia.

O aquecimento repentino dá sinais de esfriamento. Prenúncio da ressaca por vir, muito em breve! Já se encontram várias casas com placa de aluguel ou ‘vende-se’. Na Dez de Novembro, uma casa que era alugada por três mil reais agora é oferecida por mil e quinhentos, e está fechada. A situação só ainda não é pior porque os operários resistiram ao confinamento forçado nos canteiros de obra até o final de 2013, e pelo menos dez mil deles continuam na cidade. Diversos empresários, que aguardavam a redenção definitiva de seus negócios, reclamam.

Do lado esquerdo do Café do Paulo há uma lanchonete rústica e farta. Num carrinho à direita se encontram pastel e pão de queijo com um vendedor-ambulante. Há muitos que servem o café do Paulo e, ali, tomam a merenda.

O senhor do carrinho, de meia idade, trabalha no ramo há 15 anos, e confessa que os preços, nos últimos períodos, ficaram salgados, o que para ele é muito bom: o pastel ou o pão de queijo custa R$ 2,50. Mas reclama da dificuldade de consultar-se – apesar de carregar uma diabetes crônica -, pois os hospitais estão sempre lotados. Diz-se amante das massas, e é descontrolado; sabe o seu regime de cor, mas consegue fazer a dieta apenas do café amargo, que carrega numa garrafinha de água mineral, no bolso.

Esse é um fato inarredável: um dinheirinho a mais não é sinônimo de melhora da qualidade de vida de um povo. Gente vai além de papel-moeda.

O dono do areal, por sua vez, sorri até o canto das orelhas. Por enquanto! Se o cafezinho virou Café do Paulo, rendendo alguns reais por dia, duas máquinas de exploração de areia renderam dez, roncando o dia todo, e quase não dão conta. Formam-se montanhas de areia que se desfazem em instantes, como dunas, e por vezes atrapalham a saída da balsa. As construções aumentaram muito! Um morador antigo de Altamira contou no dedo doze bairros novos.

A Rodonave, empresa do grupo Barbalho que opera várias balsas no Pará, tem seus negócios aquecidos. Na Transamazônica, em Belo Monte, formam-se filas e mais filas de carro. A demanda na travessia para o Assurini, também, aumentou assustadoramente, sobretudo após a chegada da luz elétrica em parte daquela imensa área, com quase trinta mil pessoas.

Em especial aos finais de semana a empresa lucra muito, mas o povo enfrenta uma confusão só. Seu primeiro horário é às sete horas, mas se lotou antes ela zarpa, e dá quantas viagens sejam necessárias, sem previsão de horário.

A lerdeza da balsa é admirável para quem quer bater papo e aproveitar a beleza do rio, enquanto é tempo: tudo ali ficará como um rio cheio, mas será um lago! A distância entre um e outro é enorme, apesar da estética semelhante.  Mas a sua lerdeza é um incômodo terrível para quem vai rodar por mais cem km na terra, até lá no fundo de um Travessão.

Comenta-se que essa lerdeza está associada à lucratividade do negócio. Pois que a travessia do Xingu é um negócio rentável! Com o motor um pouquinho mais aberto ela andaria mais ligeira, mas isso é expressamente proibido pelo patrão porque consumiria mais diesel.

Em tudo se vê que enriquecimento de uns e empobrecimento de outros, regalias de uns e condições precárias de outros, barriga vazia de uns e excesso dos jantares de outros, palácio de uns e casebres de outros, inclusive no natal, não são duas realidades; são apenas duas faces de uma mesma moeda.

O mesmo mecanismo que gera o enriquecimento gera, também, o empobrecimento. Nada é mais perto e mais íntimo da miséria do que a opulência, ainda que, no cotidiano, haja enormes distâncias que as separem, através de muros físicos ou de cercas ideológicas fincadas na mente.

O Professor Mário, da Universidade Federal do Pará, mostrando o caminho longo e traumático da intervenção capitalista na região do Xingu (Amazônia) desde o século 17 – com engenhos de cana de açúcar e muitos escravos a partir de Gurupá e Porto de Moz -, dispara: ‘a diferença entre essa democracia hoje e uma Ditadura Militar é que, agora, se pode escolher a cor da roupa do velório’.

Guardadas as devidas proporções, o Brasil vive, de fato, um período de ditadura econômica. Decide quem tem mais poder financeiro. Um exemplo é Belo Monte: por mais uma vez a Norte Energia recebe Notificação de Liminar mandando parar a obra no dia 19 de dezembro e, no mesmo dia, a Liminar é derrubada. Uma obra ilegal segue a pleno vapor pelo poderio financeiro.

Cada vez mais a balsa, que salvara a pátria em tempos idos, torna-se um atraso na vida do povo. Cada vez mais uma ponte na travessia para o Assurini se impõe como necessária. A ponte seria um sinal mínimo de algum respeito àquele povo.

Ganha-se tempo! A balsa lerda faz o trecho de seis km em oitenta minutos (ida e volta), na ponte seriam três minutos. Ganha-se comodidade! Na balsa as pessoas ficam expostas ao sol, chuva, e se acotovelam umas às outras, espremidas entre os carros. Ganha-se segurança! Quando a balsa abre a cancela, carros e motos saem em disparada Transassurini afora e, quando a pessoa volta do fundo do Travessão, em geral corre além da conta com medo de perdê-la.

Todas as pessoas que vão e voltam do Assurini se tornam escravas da balsa. Ou se sujeitam aos preços exorbitantes das voadeiras, pagando sete reais de passagem ou aluguel de quarenta reais para a travessia. Ela (a balsa) é que impõe o ritmo do tempo, da velocidade e da vida.

Que se enfrentem, então, os parasitas do poder político, das diferentes cores e tendências, desde a municipalidade à federação. Que se enfrentem os Barbalho, os Gerdau, os Odebrecht, os Camargo Correa, os Fria, os Sarney e seu Lobão no Ministério de Minas e Energia.

A promessa de que Belo Monte viria para melhorar a vida do povo – uma troca da barragem por políticas públicas, o que, só por si, já é extremamente injusto -, transmudada em força popular, há de ser, permanentemente, um incômodo na consciência de Lula, uma pedra no caminho do governo Dilma e um obstáculo à arrogância da Norte Energia, imiscuída com o governo federal, com seus gerentes no executivo, e seus meninos de recado no senado e congresso brasileiros, na Justiça, na secretaria da Presidência da República e em diversos ministérios.

Entre os vários negócios em curso no momento, porém, um dos mais lucrativos é o direito dos atingidos. Quem diria? A bola da vez são as famílias das áreas alagadiças de Altamira. O mesmo funcionário-chefe que deixara famílias ‘assentadas’ no Madeira em condições extremamente precárias, agora anda falando e fazendo bobagens aqui, em Altamira. Ele joga bem fazendo jus ao tamanho do seu salário, e do negócio.

O Plano Básico Ambiental – PBA garante reassentamento. Isso supõe todo um conjunto de equipamentos individual e coletivo, que vai desde a casa confortável e segura até o ambiente para uma vida saudável, com políticas e serviços públicos a contento e com os meios de subsistência. A própria Norte Energia chegou a divulgar panfleto colocando reassentamento com casas de alvenaria em três tipologias. Mas a perspectiva do negócio, do grande negócio lucrativo, vem suplantando a perspectiva do direito do povo, inclusive o direito de dizer e fazer valer o seu NÃO. Quem não reza na cartilha é deixado de lado ou criminalizado.

No centro desses negócios todos, e de outros que virão à Amazônia, está a energia, mercadoria preciosa no capitalismo contemporâneo. Isso levou os donos de Belo Monte a esconder o ouro no pé do muro da barragem sob concreto. Parece conto de fada! Na antiga Ouro Preto MG, escondia-se ouro no interior dos esteios dos casarões, mas por razão libertária.

Essa mercadoria (energia) caminha de mãos dadas com a mineração e outros processos de exploração do trabalho dos trabalhadores e da natureza, o que permite maior acumulação de Capital. A Belo Sun, empresa canadense, conseguiu Licença Prévia de lavra ao lado de Belo Monte no início deste mês, e deverá lucrar em dez anos algo próximo a cinco bilhões de reais. A Vale, por sua vez, já está farejando a região. Há muito minério ao longo do Xingu, em quantidade e diversidade, e sua exploração em escala industrial ainda não começou.

Somente a força popular poderá mudar esse descalabro. Chorou-se muito! Mas o choro apenas só faz aumentar o volume das águas do Xingu, e a sede em transformá-las em força mecânica para girar as turbinas.

O Capital não tem sentimento! Há que se fazer mais que lamentar! Há que se acreditar no povo, com todas as suas contradições, e dispor-se a empenhar esforços hercúleos para a sua organização.  Essa é a tarefa mais importante de todo mundo que aposta numa Amazônia e num país soberanos.

O ditado popular ‘quem não chora não mama’ não se aplica aqui. A criança chora e sensibiliza a mãe, que lhe oferece o leite, e o amor materno. O melhor alimento do Mundo! Mas aqui, pessoas crescidinhas já não são mais crianças. E a ‘mãe gentil’ cantada no hino vem sendo mãe dos enricados.

Assusta essa normalidade bruta, feito estupro, cujo desenvolvimentismo de cunho neoliberal só consegue repetir e aperfeiçoar as práticas capitalistas, aumentando a acumulação de uns poucos enricados em detrimento do empobrecimento da grande maioria. A negação histórica do direito é usada como mecanismo de negação do direito do povo.

No boteco, toca o Amado. E na beira rio, um galo-índio, que anda a cata de um inseto qualquer, levanta o pescoço, estufa o peito e canta três vezes. Parece um alerta da ave; até ela já percebe a traição no ar.

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