A ciranda da vida

Por Claret Fernandes, militante do MAB e missionário na Prelazia do Xingu Criança é criança! Onde elas estão não faltam risos, barulho, e alguma peraltice. Às vezes há, também, qualquer […]

Por Claret Fernandes, militante do MAB e missionário na Prelazia do Xingu


Criança é criança! Onde elas estão não faltam risos, barulho, e alguma peraltice. Às vezes há, também, qualquer aborrecimento de gente grande, ranzinza, devidamente enquadrada, que não suporta, mais, o sentimento de liberdade desses pirralhos.

Quando se trata de um acampamento como o de Brasil Novo, o Novo Horizonte, com 80 famílias organizadas no MAB, e quase uma centena de crianças, é uma festa só: pulam, correm, gritam!

Sem esses filhotes de gente, o Novo Horizonte não seria o mesmo!

Muita coisa eles já compreendem. Sabem que existe o dia da criança. E participam! Rolam pelo chão, acotovelam-se, disputando  balas de açúcar na grama.

 Experimentam o sofrimento na pele pela precariedade do acampamento: muitos barracos são de lona ou palha e costuma faltar água.

Há, também, conflitos por lotes, por causa de oportunistas infiltrados, que geram discussões entre seus pais. Esses conflitos, por vezes, até os tiram do sério. Afinal, são trabalhadores, e toda paciência tem limite.

 A invasão de um lote já ocupado, por parte de quem visa somente o seu interesse, ou age como testa de ferro de algum ‘poderoso’, gera muita confusão. E quase coloca tudo a perder, pois os inimigos estão atentos, por perto, à busca de qualquer ponto fraco.

Os mandatários da região acusam os acampados de beberrões. Quem não toma um golinho de vez em quando? Mas a acusação é, principalmente, porque a classe opressora não suporta a alegria do empobrecido, e seu senso de liberdade, quando organizado. As crianças sabem do carinho de seus pais e mães, da sua labuta, e de seus sonhos.

No acampamento o ambiente é bom! Há tanta criança em berço de ouro que não tem com quem brincar. Ali, não! Tem campo, espiribol, baralho, jogo de dama. Entra e saiu muita gente, toda hora. Há espaço de sobra e muita sombra. Toda a área, de 5 hectares, pertence a elas. Correm, brincam livres!

Claro! Não falta, por cima, o carinho de alguém: o pai, a mãe, uma vizinha, uma visitante. No acampamento, as pessoas, pequenas e grandes, se tornam visíveis.

O dia da criança, particularmente, comemorado no dia 13, domingo, foi muito especial! Havia um tantão de gente com um tantão de presente: uma caixa cheia! A coordenação saiu pela rua, pediu, e ganhou muita coisa: carrinhos de sobra!

As crianças, junto com os adultos, divertiram-se à beça, o dia todo.

Pela manhã, antes que o sol esquentasse muito, fizeram uma linda caminhada pelo acampamento, levando faixas e bandeiras do MAB. Gritaram ‘águas para a vida e não para a morte’, cantaram ‘acorda povo…’, foi uma festança. Depois almoçaram juntas. Uma comida feita em mutirão, por causa delas.

Criança é mais que criança! Ela tem um quê de lindeza: elas juntam as pessoas e promovem o diálogo entre gerações diferentes!

Mas há muita coisa, ali, que as crianças ainda não compreendem. Muita coisa!

Além dos carrinhos e outros brinquedos que a população doou, havia umas pequenas sacolas de chocolate, que colocaram as crianças enfileiradas; nelas, um rostinho risonho, com a frase ‘criança feliz!’. Abaixo, no papelzinho quadrado, estava escrito: ‘Tia Zezé e Prefeita Marina’.

Isso soa como ironia! O terreno público ocupado pelas famílias estava completamente abandonado há mais de 10 anos. Um matagal só! O local servia de prostíbulo e boca de fumo. Mesmo assim, a Prefeitura tentou despejar os ocupantes por duas vezes. Entrou na Justiça, conseguiu Liminar de Reintegração, e foi lá com a força bruta para arrancá-los, levando policiais e máquina pesada. Queriam derrubar tudo, mas as famílias resistiram. Fizeram uma fila, juntando mulheres, homens, e muitas crianças, e disseram: ‘aqui, só se passar por cima de nós!’.

Um funcionário da Prefeitura costuma cortar a água dos acampados, e diz que são ordens superiores, alegando que, ali, é uma área irregular. Há idosos na cama aguardando exames há mais de quatro meses. As políticas públicas mais elementares  praticamente inexistem no acampamento.

Quando passa o ônibus da CCBN (Consórcio Construtor Belo Monte) na estrada próxima, as crianças nem imaginam que aquilo tem tudo a ver com a situação precária de suas famílias. A barragem trouxe uma carestia geral para a cidade-pólo, Altamira, com reflexo nas cidades vizinhas. Em Brasil Novo, aluguel de 100 reais saltou para 400, há lotes que custam até 100 mil.

Uma cesariana no hospital particular de Brasil Novo, o único da cidade, custa mais de 4 mil reais. Se for com laqueadura, chega a 5 mil. Nesses dias, um pai, coitado, saiu correndo pela rua afora à busca de dinheiro emprestado para o médico realizar o parto de seu filho. Do contrário, corria risco de morte!

Já outro pai, classe média, teve melhor sorte! O médico, seu chapa, fez todo o pré-natal e o parto de graça. O famoso jeitinho brasileiro. Mas logo cobrou: ‘a campanha está chegando, vou ser candidato a deputado estadual …’ .

A violência, também, aumentou.  As crianças ouvem os comentários na rádio, e entre as famílias: ‘tentaram assaltar o banco, os bandidos foram perseguidos. Na curva da Transamazônica, perto da ponte do Jarucu, o carro dos militares capotou e um policial morreu na hora. Os ladrões saíram ilesos!’.

No acampamento e na cidade, os cuidados são redobrados. Ninguém mais pode deixar a casa aberta, como antes. O sossego acabou!

O caso mais badalado no Acampamento foi, porém, o do Negão, um dos acampados.

Delirando, ele fora parar no hospital. Mas conseguira fugir. A polícia, na rua, estava em perseguição a um bandido que tinha roubado sei lá o quê. Alguém ligou e disse que havia um homem no quintal. Era noite! A polícia pensou que fosse o bandido, e pronto: mandou bala!

Negão agora já está em casa, no seu barraco. Anda, mas sente dor e carrega do lado uma bolsa com uma sonda. Seu rosto ainda é de desespero. Sua fala é um misto de indignação e timidez. Olhando para um lado e para outro, como a certificar-se de que não há ninguém por perto, ele diz: ‘me acertaram bem aqui, sabe’ – apontando com o dedo. E prossegue: ‘estava tudo escuro. Eu só via o fogo da brasa à minha frente. Pensei que fosse ficar todo picadinho. Três  tiros me acertaram aqui’, e aponta de novo para o local dos tiros, entre as pernas.

Numa das ameaças de despejo, quando o Novo Horizonte fervia, uma das mães se colocou à frente, com uma criança no colo, e proclamou: ‘não é por mim, é por esse aqui’, e apontou para o bebê’.

Qualquer um de nós, quando é pequeno, sonha como criança. Isso ocorreu comigo também. Esperava o Papai Noel, que levava presente para o meu primo rico, mas nunca passava lá em casa. Via que qualquer coisa estava errada, mas não sabia o quê.

 Hoje sei que no sistema capitalista, que tem nome e endereço, não cabe a classe trabalhadora, nem o povo, muito menos as crianças. E fico feliz com outro sonho, que vai crescendo e se multiplicando: o de uma nova ordem social!

Em tempo! No dia 18, famílias atingidas por Belo Monte ocuparam o escritório da Norte Energia no Jatobá, onde insiste em construir casinhas de concreto para os expulsos da barragem. Os acampados do Novo Horizonte estavam lá! Afinal, são atingidos!

É isso! A mudança passa pela força popular, nessa ciranda da história. É crer (e lutar) para ver. 

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| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

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