Uma história trágica se repete no Rio Madeira

Ao longo das margens do Rio Madeira os vestígios remanescentes da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, construída há um século atrás para ligar Porto Velho a Guajará-Mirim, no atual estado de […]

Ao longo das margens do Rio Madeira os vestígios remanescentes da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, construída há um século atrás para ligar Porto Velho a Guajará-Mirim, no atual estado de Rondônia, se encontram em ruínas. Construída a um custo enorme de vidas humanas devido aos acidentes e às doenças tropicais, a ferrovia consumiu vastos recursos financeiros e ambientais e é a testemunha da enorme falha de planejamento, ao não ter sido previamente introduzida a infra-estrutura apropriada para operar num meio-ambiente frágil e complexo como a Amazônia. Infelizmente essa história trágica parece que vai se repetir na mesma região, pois a ambição e a falta de planejamento ainda permanecem hoje em dia, fruto da visão limitada sobre a exploração da Amazônia.

Um pouco acima da antiga estação ferroviária de Porto Velho está sendo construída desde 2008 em ritmo acelerado a hidrelétrica de Santo Antônio, uma tentativa dramática de levar “desenvolvimento” à região sudoeste da Amazônia, sem levar em consideração o profundo impacto social e ambiental da sua implantação. Santo Antônio é uma das duas usinas hidrelétricas atualmente em construção no rio Madeira (a outra usina em construção é a hidrelétrica de Jirau), um dos maiores afluentes do rio Amazonas. O projeto completo prevê a construção de um complexo de quatro usinas hidrelétricas e uma série de eclusas que vão chegar até aos limites com a fronteira da Bolívia tornando-se, portanto, um elemento chave da chamada Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul.

O complexo das hidrelétricas do rio Madeira é o mais recente de uma longa série de projetos de colonização destrutivos no estado de Rondônia. Cada projeto traz um aumento no fluxo de migrantes para a região e as hidrelétricas do rio Madeira não são exceção: estima-se que aproximadamente 1000 novos habitantes chegam a Porto Velho a cada semana, atraídos pela promessa de oportunidades de trabalho. Esses números certamente se multiplicarão à medida que as represas comecem a deslocar as comunidades ribeirinhas, relocando esses refugiados do desenvolvimento para a cidade de Porto Velho. Com uma limitada infra-estrutura de saúde e educação em declínio, pode-se prever que a pressão populacional não é um bom prenúncio para o futuro do estado. Enquanto isso, o governo, as empresas estatais e o BNDES, que fizeram enormes investimentos nessas hidrelétricas parecem pouco preocupados com a urgência e necessidades básicas da população de Rondônia.

Não muito longe do crescimento desordenado de Porto Velho, a pacata comunidade ribeirinha de Teotônio parece parada no tempo. Teotônio fica em uma série de corredeiras, com abundantes e variadas espécies de peixe, que proporcionam aos seus habitantes uma alimentação segura. Essas corredeiras são comuns no Rio Madeira, o que impossibilita a navegação muito acima de Porto Velho; as represas vão submergir essas corredeiras, alterando permanentemente o frágil ecossistema do rio. Dessa forma, as hidrelétricas irão destruir a forma básica de subsistência dessas comunidades tradicionais, pois vão devastar as reservas de peixe, que são a principal fonte de alimentação do estado de Rondônia.

Para o povo indígena Oro Wari que vive num afluente do rio Madeira, as hidrelétricas representam uma ameaça não apenas ao seu modo de vida, como também a sua sobrevivência. Como o líder local Eleazar Oro Wari afirmou: “A gente não foi consultado. Se construírem essa barragem como a gente vai fazer sem o peixe? E esse rio não é das empresas, elas não podem vir aqui para ganhar dinheiro. Há muitos anos que a gente está aqui, a gente precisa do peixe que vive nesse rio”. É difícil negar que os bens comuns da Bacia do rio Madeira estejam sendo privatizados para o beneficio de meia dúzia. Aqueles cujas vidas dependem dessas águas, no entanto, sofrerão apenas o impacto negativo das hidrelétricas.

E comum para as comunidades ribeirinhas receberem pouca ou nenhuma consulta, muito menos, compensação, do governo ou dos consórcios responsáveis pelas barragens. E quando se opuseram aos planos de reassentamento, aliando-se a grupos de resistência popular como o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), o governo respondeu com táticas de intimidação e coerção. Se as represas fossem realmente construídas para o beneficio do povo brasileiro, porque então o governo recorreria ao uso de tais táticas?

Na comunidade de Nueva Esperanza, no lado boliviano do rioMadeira, os iminentes impactos da construção da hidrelétrica de Jirau, a segunda das duas atualmente em construção, são recebidos com raiva e incredulidade. Como a líder de comunidade Maria Rodriguez Bustamante disse frustrada: “O governo brasileiro nos diz que a inundação não afetará o lado boliviano do rio. Nós sabemos que isso não faz sentido – as águas não respeitam margens! Se a nossa aldeia for inundada, para onde nós iremos? Nós somos seres humanos e precisamos ser tratados com respeito e dignidade”. O respeito às comunidades ribeirinhas da Bolívia e à soberania do pais, parecem já ter sido submergidos sob o imprudente compromisso do Brasil com o complexo do rio Madeira.

As hidrelétricas do Rio Madeira foram comparadas a uma “bomba atômica” pela blogueira ambientalista Telma Monteiro: “as barragens produzem o efeito arrasador de uma bomba sobre o solo, enviando ondas de destruição na Amazônia como as ocupações de terra e vasto desmatamento propagando um furioso desequilíbrio ambiental. A Amazônia é frágil e basta um único mega- projeto para desencadear e propagar a destruição”.

Enquanto as lições da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré se perderam, as conseqüências do atual projeto brasileiro para a bacia do rio Madeira vão desbancar e superar enormemente esse fracasso de um século atrás. A possibilidade real de promover danos permanentes para a região vai eclipsar aquele primeiro fracasso da Madeira-Mamoré, com o maior potencial agora de produzir danos sociais e a ruína ambiental para toda essa região.

 

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